Este, escrito na década de 90, foi agraciado com o Prêmio Leminski 2010.
Certamente, as imagens não retratam a realidade do episódio
Estou chocado, entristecido, estupefato, pois o mundo não pode aceitar isso. Há pouco retornei do enterro. Meu melhor amigo se foi. Justamente aquele, meu confessor, cúmplice e colega. Um amigo inesquecível. Comíamos e bebíamos juntos, até no mesmo copo. Um amigo de décadas.
Tantas vezes saímos a quatro: ele e a namorada, eu e a “Tuca”, irmã dela. Certamente não serei o mesmo depois da morte dele.
Esta triste história começou ontem, cedo. A “Lu” havia pernoitado aqui, pela terceira vez. Só não dormiu comigo, porque discutimos ao discordar sobre o nome verdadeiro do Silvio Santos. Foi uma discussão besta, concordo, mas no calor da contenda não se pensa nisso. Eu acabei por dormir no chão, neste repentino frio danado, sobre um colchonete duro, parcialmente enfiado sob a mesa de pedra. Passei frio durante toda a noite.
Ela no sofá, na mesma sala de televisão, emburrada e emudecida, tal uma vaca. E, quando acordei, não lembrei onde estava e bati, violentamente, com o nariz na aresta inferior do granito. Sangrando muito, fui ao banheiro lavá-lo, mas estava fechado, pois ela tomava banho. Fechada e furiosa, ruminante microcéfala. Mas estas particularidades não interessam.
Tentei então lavar o nariz no tanque de lavar roupas, onde enrosquei o pé nas minhas roupas sujas amontoadas e caí, com o cotovelo esquerdo na tábua de passar, antes de estatelar-me no chão, com a nádega no degrau da porta. Berrei por ela, o cachorro começou a uivar junto e não resolveu coisa alguma.
Fui então sentar-me na cozinha e chorar minha desgraça, até ouvir o ruído da porta, fechando. Ela nem se despediu. Eu juro que aqui ela não entra mais. É formosa, mas estúpida.
Ao tentar tomar banho, assimilei mais um motivo de fúria dela: o chuveiro havia queimado. O jeito seria tomar um café sem açúcar, que tinha acabado, mas como a cafeteira estava suja, fui me vestir, com muita dor e dificuldade.
O nariz tinha uma laceração entre a cartilagem e o osso, o cotovelo estava roxo e o braço meio bobo, sem comando. Um galo na têmpora, um pequeno corte na orelha e dor, muita dor, no joelho e na lateral da nádega, complementavam a desditosa imagem.
Como tinha que chegar cedo ao serviço, entrei no carro, acionei o portão eletrônico e tentei sair, já atrasado. Claro que, com a chuva torrencial que repentinamente se abateu, o portão trancou.
E lá fui, tal pinto molhado e furioso, desemperrar a imensa e pesada grade metálica. Deixei aberto, para a empregada fechar. Nem lembrei que ela não vem quando chove muito.
Saí em ré, com muita dificuldade e, manobrei quase batendo num ônibus apressado, cujo irritado motorista acenou-me, mostrando ereto, o dedo médio.
Não andei mais que uma quadra e, bem no meio da rótula, para entrar na avenida, desconfiei que a dificuldade em dirigir não era minha, mas sim de um pneu vazio. Desci do carro ali mesmo, para confirmar, quando alguém chamou uma ambulância dos bombeiros a me ver naquele lastimável estado.
“Quem lhe atropelou, fugiu?” perguntou-me um passante. Eu queria apenas um guincho e um táxi. Só isso! E o bombeiro, então chegado, limpou meus ferimentos sem querer entender minha história (pudera!). Obrigou-me a assinar uma negativa de necessidade de atendimento hospitalar e tirou o time.
Eu havia emprestado o estepe pro Xico (agora falecido), ainda no verão passado. Afinal, temos os carros semelhantes e, ao irmos para o litoral, o dele furou dois pneus. E rodas de carros antigos, tais os nossos, são raras e não servem em qualquer outro recente. Nem me lembrava disso. O coitado morreu sem devolver o estepe.
Para encurtar o trecho, duas horas depois eu chegava ao trabalho, sem carro, sem celular (sei lá onde caiu), todo molhado, doído e desesperado.
A secretária (a mula gorda) avisou-me que o diretor me aguardava. E, como era de se esperar, não me permitiu sequer balbuciar a explicação. Ao me dar uma infinda bronca, com o indicador direito apontado, eu não esperei o fim e o mandei à merda. E repeti três vezes, aos berros: “Sua Excelência VÁ À MERDA”. Eu não aguentava mais.
Desci os cinco pavimentos pela escadaria, caí duas vezes (numa bati com a testa num degrau e na outra virei o dedo médio da esquerda) e só parei quando estava na garagem do subsolo. Mera atividade mecânica, imaginando que o carro estaria lá.
Saí a pé na chuva, mancando de dor na perna esquerda, todo estropiado. Fiquei “séculos” no meio fio, acenando para os raros táxis e, o máximo que fizeram, foi respingar água. Resolvi então aguardar um ônibus e ir para a casa do Xico, pois ele fica em casa, pela manhã.
Mas sem óculos (deve ter caído com o celular) e com ninguém para me auxiliar, eu não conseguia identificá-los. Depois de várias tentativas frustradas, continuei a pé mesmo.
Passava do meio dia quando cheguei lá e eu mal sentia tato nas pernas. O Xico, logicamente, já havia saído. E, como a rua é deserta, sentei no meio fio e fiquei encostado numa árvore, meditando sobre as maldades da vida. Coisa de alguns minutos e estava repleto de formigas.
Algumas picaram com tal violência que eu arrancava metade do seu corpo e elas não largavam...
Não conseguia imaginar o que mais poderia acontecer. Pensei até em ligar a cobrar para o meu irmão, de um telefone público. Eles existem em todo o lugar onde não se precisa de telefone.
Voltei para o centro a pé, pois já estava com bastante fome. Mais uma hora mancando e cheguei à Avenida Central, “encontro” das lanchonetes aqui da cidade. Molhado, com visíveis e feios hematomas, manco e com a cicatriz (ainda meio aberta) no nariz, convenientemente escolhi a pior, a mais feia e vazia lanchonete e entrei. Acho que já era meia tarde, não tinha certeza, pois o relógio parou. E, se não tivesse parado, não haveria diferença, pois eu estava sem óculos.
Sentei num dos poucos banquinhos, à margem do balcão, e pedi um hambúrguer e uma Coca-Cola à garçonete. Ela me fitou atentamente (não deveria ser diferente) e depois perguntou se estava me sentindo bem. Deu-me um copo d’água enquanto eu aguardava o lanche. Contei-lhe a história toda, devidamente resumida, enquanto ela empacotava flores. Uma adolescente linda, ela tinha os cabelos claros e me ouviu! Deu-me doce atenção! Era quase tudo o que eu queria. Seria pedir-lhe muito, tomar-me em seu colo e me fazer adormecer, com as suas delicadas mãos a acariciar meus poucos cabelos.
Ela foi um venerável anjo. Ao menos até informar que ali era uma floricultura.
Eu sentia muito cansaço, meio tonto. Mas agradeci e ela amparou-me até a porta. Pensei em ajoelhar-me aos seus pés, divina e linda fada e beijar-lhe as mãos. Se o fizesse, eu não levantava mais. De lá eu deveria ter telefonado para o amigo Xico. Lembro que ela até ofereceu o telefone. Fui uma anta retardada, mas consegui ir caminhando (mancando) no sentido do consultório do Xico.
A chuva havia parado e entardecia uma neblina pesada e morna, presságio de mais água.
Eu já não conseguia comandar plenamente o corpo e era comum ouvir buzinadas e palavrões ao atravessar as ruas. Mas a cabeça estava boa, ao menos por dentro. Sentia-me leve, como se voasse baixo.
Perguntei a um guarda, onde teria um telefone público e ele informou que, no quinto quarteirão, bem em baixo de um prédio alto, havia quatro “orelhões”. Tanto trabalho tentando encontrar um e agora eu estava próximo de quatro. Oh, augusta felicidade!
Enfim, cheguei aos telefones, situados em frente ao descrito prédio alto. Era o prédio do consultório do Xico! Tomei o elevador e, sozinho sentei-me no chão do veículo, valendo-me da desaceleração para erguer-me novamente.
“O doutor Francisco foi pra fazenda, volta amanhã. O senhor quer deixar recado? “ informou-me a secretária, já ameaçando fechar a porta.
Pedi o telefone emprestado e liguei para o celular dele, que estava fora de abrangência. Agradeci e descemos juntos no elevador. Ela perguntou se eu estava me sentindo bem, por três vezes, e não sei por que, pois no térreo sumiu apressada.
Nas proximidades encontrei uma praça, onde sentei num confortável banco, agradecendo aos céus pela existência dele no meu caminho, ante a chuva que recomeçava. Acho que fiquei ali umas duas horas e, como eu não conseguia dobrar o joelho, resolvi procurar uma farmácia.
Ao encontrar um policial, perguntei onde teria uma farmácia ainda aberta e, para minha surpresa, ele respondeu com um sorriso e uma pergunta: “O senhor encontrou os orelhões?”
Surpreendido por reencontrá-lo e pela sua memória, respondi afirmativamente com um aceno da cabeça e, com muita atenção, ouvi sua orientação geográfica. Não foi difícil encontrá-la. Era uma farmácia pequena e sem movimento.
Lá, o infame e solitário balconista, que mais parecia um vendedor de “carnê do baú”, insistiu em me vender mais medicamentos. Saí dali com uma sacolada de coisas. Conseguiu me vender até Phymatozan, Glycerophosphato, Strychnine, Antiphlogistine, Rhinogenol, Leite de Rosas, de Magnésia, de Aveia, de Colônia, Peitoral de Angico Pelotense, Lypocholepatine, Bismutho Geyer e outros produtos, certamente vencidos ou falsificados.
Andei dois quarteirões e, apoiado numa grande lata de lixo, abaixo de uma luminária, eu lia os rótulos e jogava os frascos no lixo. Cada um acompanhava uma gargalhada. Ri tanto que me urinei, pela segunda vez.
Eu já não sentia cheiros e limitava-me a rir das tantas coisas que o infeliz vendeu, além do que me interessava, as quais paguei com meus inúteis “vales-refeição” vencidos.
Voltei para o bairro, exaurido e sem saber exatamente como. Só sei que me flagrei sentado no bar do velho Antenor, onde eu e o Xico nos encontrávamos intermitentemente, o que agora (oh! meus santos), nunca mais o faremos.
Por alguns minutos fiquei ali, ao lado de “outros” bêbados, cada qual mergulhado em suas dores e odores.
Antes de beber, em lágrimas dissimuladas, agradeci ao Supremo Criador por tudo o de bom que havia me oferecido.
Afinal, eu nunca fui um exemplo de coisa alguma. Como amante eu deixei a desejar em todas as chances que tive. Como motorista, atropelei um cachorro e dois gatos. Meus irmãos pouco me ligam. Para minha viúva mãe, não recordo ter feito algo de bom. Também pudera, ela me detesta... Ou é o irmão caçula que ela odeia??...
Eu não lembrava mais. Também, já não fazia diferença quem ela detesta ou detestava, nesta altura do campeonato perdido. Eu estava embriagado e, mesmo antes de beber, confundia as idéias e as conclusões.
“Agora é beber e depois ir para casa, se conseguir chegar moribundo até lá”, pensei.
Eu já não enxergava bem, nem o copo ainda cheio, quando chegou alguém por trás e falou meu nome, carinhosamente. Ainda consegui me virar e ver o Xico, meu querido amigo Xico.
“A telepatia funcionou, meu aguardado amigo Xico”, balbuciei.
Eu estava em lágrimas. Mas não deu tempo.
Então eu o abracei, ele rapidamente pegou meu copo e, na mais ingênua ignorância, com sofreguidão, bebeu todo o meu veneno, guaraná com estricnina.
(A insolidez da vida é par à tangibilidade da ficção)
Darlou D’Arisbo
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