terça-feira, 31 de maio de 2016

018 - As cruéis vespas e o desafinado cantor

“É vedada a utilização de quaisquer informações contidas nestas publicações, sem autorização expressa de seu autor, sob pena de indenização judicial.”
 
Um meu dente molar superior direito apresentou patologia atípica, com diagnóstico de fratura na raiz e solução cirúrgica com implante. 
 
Com a intervenção marcada para as 10;00h, cheguei pouco antes, com banho caprichado e dentes bem escovados. Fiquei lendo o livro do amigo Marcos (Folhas Secas) por minutos até que a secretária me atendeu. Trouxe-me um copinho com antisséptico para eu “bochechá-lo”.
 
Logo fui chamado pela assistente para acomodar-me na confortável poltrona da sala de cirurgia. Pintou meu rosto com uma tinta amarelada e cobriu-me todo com um lençol furado, aberto apenas entre os olhos e o queixo.
 
Conversamos um pouco sobre suas filhinhas e logo entrou o douto Acácio (do grego akákios, “sem maldade”). Cantarolando, sorridente e contente, embora fosse uma criança introvertida, fechada quando eu o conheci, desde seus 12 anos. Ainda bem que mudou, cresceu, evoluiu, para orgulho dos seus, incluindo os que usufruem de seu conhecimento aplicado.

Vestiu seus alvos paramentos, observou mais uma vez, minuciosamente, o local do ataque e foi conferir o instrumental.

Então, desafiou meu sexagenário trauma de injeção na gengiva: “é só uma picadinha de pernilongo da chikungunya...” afirmava rindo a cada nova ferroada. Foram umas seis, mas eu contei mais de duzentas picadas de vespas...


Ao aguardar o efeito do limitado narcótico, conversamos causos, até ele notar que eu falava com meia boca. Senti que ele tomou um bisturi e talhou a gengiva, verticalmente, abrindo espaço para entrada de uma esbelta talhadeira de pedreiro. 
 
Passou a golpeá-la com um lindo martelinho prateado, intermitentemente entre o alvéolo ósseo e a raiz do dente, circulando as pancadas. Cada uma causava um terremoto nos meus neurônios, reacomodando-os. Acredito que minhas ideias serão outras após a série de impactos... 
 
Depois da segunda série, prendeu firmemente o dente com o boticão (um diabólico alicate) e atracou-se a tentar arrancá-lo. Senti minha caixa craniana desalinhar, tal o esforço aplicado. Teimoso tanto quanto o dono, o molar negou-se a sair.
 
Então mais uma série de pancadas, enfiando o bisel da talhadeira cada vez mais fundo no alvéolo ósseo, ao redor da raiz. Nova reacomodação dos meus neurônios ao infindável sismo cerebral. Abraçado na minha cabeça enforcada, em esforço oposto, Acácio cantava e suava. O dente desafiou-o mais uma vez e apenas gemeu como taquara rachando. 
Assustador boticão antigo
 
Como, no fim deste segundo tempo, o jogo estava empatado entre o douto e o molar, promoveu-se um terceiro, com mais esforço na pancadaria da talhadeira. Meus dendritos e axônios dançavam frenéticos um desencontrado “rap” maluco. A assistente rezava muda, com seus lindos olhinhos escancarados. O douto tentava enforcar-me com o braço esquerdo esticando meu pescoço e, com o boticão na direita, puxava e torcia a teimosa estruturinha. Imaginei que meu pescoço nunca voltaria ao normal e, para sempre, ficaria como as Kayan Lahwi (as mulheres girafa africanas).

Mas, na prorrogação do terceiro tempo, a “bola entrou” e o molar saiu. O gol da classificação, com a invisível multidão ruidosa aplaudindo de pé.

Acácio ergueu solene o triunfo da vitória, tal a estátua da liberdade, mostrava aos céus seu sucesso contra a teimosia estática do travão alveolar.

Apresentou-me, na raiz do cujo retirado, os detalhes da visível trinca e as formações aderentes resultantes da patologia instalada. Discorreu sobre seus inescusáveis conhecimentos e experiência em tais casos.

Preparou o alojamento de um imenso parafuso metálico (um parabolóide tronco cônico) no maxilar, um buraco tão profundo que pensei iria roçar no meu olho direito. Broqueou, lixou e alinhou a pousada de tão insigne metal, estranho à minha fisiologia. Quiçá emanará radiação benéfica ao meu alimento, à minha alma ou aos queridos que me circundam. 


Possuo uma antiga, movida a pedal! 

Apertado o fixador com seus regulares tantos Newtons (qual aperto dava-se antes deste nascer?), cantarolando a odiosa música da roupa de um tal Pedro, contente, deu-me mais uma extraordinária notícia: como a cratera alveolar era de secção elíptica, seria necessário um preenchimento ósseo nas duas opostas “lúnulas” vagas.
 
E a solução seria simples e fácil, afirmou o douto: retiraria fragmentos ósseos do outro lado do maxilar para recompor este. Tão singelo como retirar terra de um canteiro para colocar ao pé das flores do outro. Amanhã vou realizar tal tarefa em meu jardim de rosas e, observar se ele não vai contorcer-se de dor.

Imediatamente iniciamos a segunda cirurgia: as vespas anestésicas atacaram novamente, agora a bombordo. Repetindo nos detalhes a respectiva descrição anterior.

Logo a boca equilibrou, com os lados equivalentes entorpecidos. A cabeça, ainda sóbria, navegava em nuvens harmônicas e macias.

Três cortes com início comum (um Y) profanaram a mucosa posterior da gengiva esquerda, lá no fundo, após o último da fila. .
Abertas, tais pétalas de carne, um formão com ponta de ralador entrou e rompeu os tecidos aderidos à dureza óssea, despindo e desbastando a rigidez do maxilar.
 

Então o douto, munido de um aprimorado e torturante alicate biarticulado escavador, foi arrancando as frações sólidas e, com uma micro espátula, colocando e socando-as nos espaços alveolares de estibordo. Umas três cargas foram suficientes para nutrir a periferia e fixar na família o metálico bastardo intruso. 
 
“Pronto!”, afirmou o desafinado cantor. Como se o tal vocábulo simbolizasse o fim do empreendimento. Faltava sim todo o acabamento, as muitas suturas nos dois extremos. Foi a vez dos outros vespídeos atacar as esbeltas carnes já acordando da apatia anestésica. Um furo aqui, outro ali, um ponto, uma vírgula, um nó helicóide pela pinça de pressão. A atenta assistente corta cada laço, na precisão exata e os pacotes começam a receber minúsculas gravatinhas borboletas. São presentes que recebo hoje, pois que amanhã serão passado.

O douto cantor (morreria de fome, fosse só cantor), demonstrou todo seu proficiente conhecimento, sua habilidade e competência em mais de duas horas de estafante e vitorioso jogo.

E, para finalizar, nada melhor que derivar sobre nada a ver. No caso, falar sobre os malfadados problemas da indústria aeronáutica brasileira....

Darlou D’Arisbo – 20 de maio de 2015
(O conto é verídico, as gravuras fictícias)

 

terça-feira, 24 de maio de 2016

017 - Os impressos e o desenvolvimento intelectual


O cânion do Itaimbezinho (do Tupi: pedra cortada) é uma imensa e tortuosa linha de escarpas paralelas. Sempre tive curiosidade em ver sua nascente minúscula, que depois serpenteia e amplia, com 5,8km de extensão e 720m de altura, separando os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Num rigoroso inverno passado, com a esposa, munidos de coragem e determinação, fomos com nossa “casa rodante” até Praia Grande (sopé da Serra do Mar). Ali contratamos um guia (numa velha Kombi) e subimos a montanha, agitando-nos por caminhos quase inacessíveis e paisagens maravilhosas.
  
Solitários e deslumbrados naquele gélido paraíso natural, ao caminhar no alto do penhasco, encontramos ali dois senhores que lá também percorriam.
 
Um deles despertou-me curiosidade, pois ao conversarmos sobre nossas atividades, ele declarou: “sou um humilde cidadão, governador do estado que aqui inicia”.
O inusitado fato tornou-me simpatizante e leitor dos escritos publicados deste, depois senador, Luiz Henrique da Silveira (infelizmente já falecido).
 
 
Num destes artigos, descreve ele sobre o possível desaparecimento dos jornais, livros e revistas.
Questiona sobre o anunciado fim do prazer de percorrer as estantes das livrarias, de receber o jornal na nossa casa, de folhar a revista preferida,...
E cita o peruano Mario Vargas Llosa, quando este alerta, com plena razão, que: “se o mundo continuar o processo, no qual a palavra impressa está sendo substituída pelo audiovisual, corremos o risco que desapareça a liberdade, a capacidade de refletir, de imaginar, além de outras instituições, como a democracia. Pois a linguagem impressa desenvolve um efeito criativo e intelectual que é eliminado com o visual. A leitura cria cidadãos mais críticos e responsáveis, contribuindo para um mundo melhor.”
 
Voltando à minha infinda experiência de leitura, lembro que, no meu décimo aniversário, papai me presenteou com uma pesada coleção de 18 volumes do Tesouro da Juventude.  Confesso que, no dia eu preferiria um aviãozinho de montar, mas como intermitentemente o papai exigia que eu comentasse algum assunto lido, fui, aos poucos, mergulhando no grande fascínio da leitura, um sublime prazer que alimenta o intelecto, cujo encanto eu sempre manterei. 
E, para finalizar, ao receber hoje mais um fantástico presente: meu segundo neto está a caminho, lembrei-me das palavras daquele governador:
“Quando encerrar meu mandato, vou iniciar o tratamento que preciso fazer, que é o da netoterapia..  E vou ler e escrever."
 
 
Enfim, diariamente homenageio os autores dos livros, revistas e jornais, pais do meu exército de papel, tão responsáveis pela evolução minha... e do mundo.
 
Darlou D'Arisbo