terça-feira, 11 de março de 2014

003 - O Melhor dos Vinhos

 
Nesta postagem, uma excêntrica história da série “Crônicas” e escrita há décadas. Obviamente as fotos não revelam exatamente as imagens do episódio.
As crônicas desta série constituem nada mais que o cultivo de pérolas no mar da vida. Um reflexo oportuno, relatando numa interpretação imaginativa, ficcional e subjetiva, algumas passagens da minha existência
 
O Melhor dos vinhos
Talvez eu não devesse ter ido. Mas tantas vezes se faz alguma coisa por mero ímpeto. Coisas simples, curiosidades, coisinhas enfim. Fazemos, às vezes mecanicamente, até sem interesses em resultados. Normalmente não nos trazem problemas estas coisinhas, embasadas no “ir ou fazer”. Assim vamos, quando alguém nos chama, mesmo sem saber quem nos chama ou o que quer nos informar.  
Mas enfim, eu ainda tenho dúvidas se deveria ter ido. Coisa que já informei lá no início. Ora, costumamos dizer “eu não deveria ter feito” quando já feita, ou até justamente por isso. E, em vezes, as consequências são agradáveis, outras não. Pois desta vez sim: agradável e curiosamente estranha. Ou o inverso: curiosa e agradavelmente estranha.
Era uma estrela cadente, destas como mil por aí. Estávamos os três na varanda fresca do gracioso apartamento do casal de amigos.
Interrompi bruscamente o assunto e exclamei pro Xico: “olha lá”. Apontei ao lado direito da coluna do prédio, na direção sudoeste.
“É um meteorito, e deve ter caído perto, pois notei que sua luz desceu aquém do pé da última colina”, eu disse.
Coisa de uns sete quilômetros, pensei. Tive vontade de ir lá e vê-la: a gota caída do céu, estaria ainda vermelha em brasa.
O Xico (médico, amigão, cético e lerdo) respondeu:
“Deve ser alguma estrelinha caída de tua fértil imaginação...”
Já a Miri, sua esposa, foi ao menos mais polida, ao dizer:
“Tens direito a três pedidos...”
“Ajudar plenamente alguém, brincar com uma criança e saber cativar uma doce mulher..” respondi.
Ela fitou-me profundamente e disse, lá do fundo:
“Boniiito...”
“Eu pediria um estetoscópio eletrônico, uma Ferrari zerinho e clientes ricos.” falou sorrindo o Xico.
O assunto era vago, a cerveja acabada, a noite avançava e a Miri, disfarçadamente, bocejava... Forcei também um bocejo e, com ele justifiquei a despedida do casal de amigos.
Tomei o carro e, sob os seus acenos, deixe-os abraçados, na mesma varanda.
Eu ia ao hotel, onde estava hospedado, mas a noite convidava a passear.
Parecem existir, cá no interior, mais estrelas que nas capitais e, cada uma delas aparenta sussurrar algo. Cada qual encerrava algo, tal um sigilo.
Diminuindo a velocidade, parei o carro. As estrelas fascinavam-me.
478a
Curioso, acionei a partida e aprumei o carro para o sudoeste. Desci todo o vale por uma estradinha sinuosa e escura. Assim como um cubículo corredor, com florestas silenciosamente adormecidas aos lados, curvas firmes e lógicas à frente, lúgubres no retrovisor escuro.
O chão, quente e natural, parecia que eu tentava acordá-lo com os faróis. E, acima, uma contínua faixa daquilo que apelidamos céu e, que no fundo, não sabemos exatamente o que é.
Ao fim de uma descida suave, então quase plana, vi à direita, algo como se fosforescente, a uns vinte metros ao lado da estrada. Um louco e suave impulso me fez, a pé, ir até lá.
Eram metais treliçados, em forma de tubos fosforescentes. Ou vidros cilíndricos como lâmpadas tenuemente acesas e levemente dobradas.
Em conjunto, aqueles tubos formavam algo como uma escultura moderna e curiosa. Uma composição geométrica. Era uma “coisa” indescritível. E, aquela sensação infantil e curiosa de descobrir algo, tomou-me, a esquecer de perigos, bandidos, animais noturnos e coisas assim.
A estranha “coisa” estava parada, imóvel, silenciosa. Parecia emanar dela, uma impressão de paz.
Não acredito que seus “raios”, de sutil luminescência, ativassem meu cérebro para sentir aquela feliz serenidade similar de quando, por exemplo, se encontra uma concha azul, em forma de sino, na tranquilidade da beira mar...
Cheguei bem próximo e, com o medo esquecido, toquei-a com a mão. A tal estrutura parecia ter brotado ali. Era fria, composta por um conjunto de canos paralelos e curvos, com ligamentos em forma de transversinas. Pareciam ocos semitransparentes e, internamente iluminados, assim como fracas e finas lâmpadas fluorescentes. Tinha o tamanho pouco menor que meu carro.
Na parte superior e ao centro, os canos suportavam mantas de espuma plástica (ao menos pareciam). Assim como confortáveis e delicadas cadeiras de dentista, sobrepostas.
Abaixo, também englobada pela estrutura, havia uma parte em forma de caixa, fosca e escura, com as arestas arredondadas.
Rodeei-a, tentando visualizá-la melhor. E atrás, três pequenas antenas, como se constituíssem o cume de uma deitada pirâmide triangular.
Pensei em voltar rápido para a cidade e buscar alguém para testemunhar o meu achado (ou meu sonho).
Porém, como aquilo poderia não acontecer novamente, resolvi ter certeza de não sonhar, confirmando sozinho a existência do tal bólido.
Seria temerário denominá-la uma nave extraterrestre ou coisa parecida. Ou relacioná-la com a estrela cadente.
Eram duas confortáveis e delicadas poltronas (quase camas) sobrepostas e suportadas por uma estrutura fosforescente amarela. Como se fossem tubos translúcidos com gás incandescido. Eu estava deslumbrado. E a tal caixinha preta, seria o motor? Sentia-me muito tenso. Não abalado, mas por extrema curiosidade.
Apalpei esta tal caixa. Era como o todo: fria e fechada.
Seria impossível tal cubo, do tamanho de uma caixa de refrigerantes, servir de máquina para uma nave espacial ou um helicóptero, seja lá o que fosse aquilo! Não havia entrada de ar, ou saída. Apenas um bloco fechado com três anteninhas, embaixo de duas esbeltas poltronas...
“Devo imaginar outra hipótese, isto não é uma nave espacial” pensei.
Cheguei a exclamar, sonoramente, para o negro eco noturno:
“Isto não é o que parece ser!!!”
“É, sim !” respondeu-me uma voz, logo atrás.
Foi o suficiente para eu me conscientizar e pasmar. Era uma voz de mulher, resoluta e delicada, pensei, sem ter coragem de virar-me ou encará-la.
“Você está armado?” perguntei-lhe, forçando ignorar sua patente feminilidade..
“É um veículo capaz. Mais do que os que tu conheces” falou, ignorando minha pergunta.
Vi minha sombra trêmula, projetada num arbusto à frente, o que me fez concluir que a pessoa estivesse caminhando em minha direção, com uma lanterna na mão. Ou com alguma luz difusa, sem foco concentrado, amarela e inconstante.
“Semelhante a uma vela acesa!” respondeu-me, adivinhando minha dúvida.
Num sobressalto, virei e joguei-me de bruços no chão úmido, num bobo ímpeto de escapar de possíveis disparos de arma. E, ao encará-la, fui tomado de pasma comoção.
Era uma bruxa. Ou tinha tudo para ser. Deitado que estava, observei-a de baixo para cima. Sapatos baixos e grandes, pretos, enrugados e foscos. Seus pés, imensos, não eram paralelos.
Formavam um ângulo de uns 20 graus. Vestia uma bata (um saco) de tecido pardo e folgado. Coisa de dois números maior que seu estreito e angular manequim.
Bruxa do conto
Sobre esta, tinha um casaco (ou jaqueta), com mangas muito largas, sem gola, vermelho ou roxo. A mão esquerda segurava a tal vela, ou algo semelhante, com a chama dentro da cera, sem candelabro ou suporte. A direita firmava um reluzente bastão metálico, de aproximadamente um metro.
Seus dedos eram suficientemente longos para, cada um, dar duas voltas na vela (ou no tal bastão). Eram magros, com as juntas grossas e unhas compridas e agudas. Seu rosto era “incomportável”. Tinha traços humanos, mas era destituído do menor senso estético. A boca, sempre semi fechada (mesmo quando falava), tinha lábios enrugados, pálidos e mortos como toda a pele aparente. As laterais côncavas com os ossos zigomáticos salientes. O nariz, longo, afilado e torto para a esquerda, com uma grande verruga lateral direita. Os olhos pareciam mergulhados em ninhos de rugas de pele. Eram claros, diretos e brilhantes. Um lenço (ou algo parecido), da cor do casaco, cobria-lhe a cabeça.
“A luz da vela identifica-me, iluminando minhas cores, nariz, verruga e olhos.. E dá sombra às minhas rugas, tal como me conheceste na noite das meias comentou ela, já imóvel e próxima.
Lembrei-me que, há onze anos, viajávamos eu e a Beatriz (a qual semi adormecida, reclamava do frio nos pés) pelo oeste de Santa Catarina, numa madrugada fria e chuvosa. Ao encontrar uma infeliz e solitária velha, no acostamento, eu parei o carro e ofereci carona. Ela não aceitou e disse-me que estava ali, à margem da estrada, aguardando-nos para oferecer o par de meias longas e grossas....
Incrédula até hoje, a Beatriz guardou as tais confortáveis meias do inacreditável sonho, que eu nunca entendi.
“E o que vais me oferecer desta vez?” perguntei.
Novamente ignorando a pergunta, ela apontou com o bastão, a poltrona superior, dizendo-me:
“Instala-te”.
A princípio não entendi e ia perguntar, mas lembrei que ela evitava responder. Levantei-me apreensivo, coloquei o pé esquerdo sobre algo que parecia um degrau, o joelho direito sobre a espuma fofa e deitei-me.
Então, devidamente instalado, notei que a tal poltrona era tão aconchegante, que se assemelhava a uma forma de mim. Era cômoda e confortável.
Olhei o céu muito estrelado e senti vertigem. Medo de cair naquele infinito vazio escuro.
Ela chegou perto de meu rosto, mas não senti seu calor. Supus que era fria como a luz de dentro dos canos. Vi seus olhos tão de perto, tão brilhantes, que pareciam minúsculas lâmpadas incandescentes. E o nariz, imenso e curvo, seria dispensável, pois ela não parecia não respirar.
“Para cheirar!” respondeu-me imediatamente.
Sem dúvida, telepaticamente, ela captava meus pensamentos...
E, segurando na ponta das unhas, colocou minúsculas pastilhas (ou comprimidos) nas minhas narinas.
Tomado pela decisão de assistir o “filme” até o fim, eu não ousava discordar.
“É um leve cloridrato de prometazina, para aliviar a sensação de vertigem!” disse-me, como sempre, delicadamente.
Senti um volátil e débil odor salgado, mas acabou logo.
Observei que ela acomodou-se na poltrona inferior e, logo após, tentei em vão elevar a cabeça cada vez mais pesada. Consegui observar meu carro, ainda com os faróis ligados e depois as luzes da cidade distanciando-se ...ao alto !
Eu me sentia muito bem e não experimentava frio nem calor.
FOTO da Terra
Vi, depois, as estrelas sobre mim desviarem-se para a esquerda, confundidas com o horizonte e algumas aglomerações luminosas. Talvez fossem vilarejos.
Não senti movimento algum e parecia estar parado a grande altitude, num espetáculo negro, salpicado de tênues luzes e cores, esperando o movimento dos continentes na contínua rotação de nossa amada Terra.
Não tive tempo para refletir, ou tirar conclusões. Foi muito rápido e, quando senti frio, já estava aqui nesta cabana pequena e acolhedora, com uma lareira acesa, à esquerda. À frente, numa mesa decorada com toalha branca rendada, um jantar estranho e apetitoso, uma garrafa de vinho e duas taças de cristal.
Atentei ao rótulo da bebida: lá, a paisagem de um antigo lugarejo com rua estreita e pavimentada com pedras grandes, casas de fachadas em estilo árabe, com pequenas e ornadas sacadas metálicas.  Na rua, desenhada também uma bela moça transportando um balde com uvas.
Em letras neogóticas, li naquele rótulo: “Viño Rioja - El Mejor Viño de España.”
A linda jovem do rótulo, então surpreendentemente sentada à minha frente, ergueu sua taça e convidou-me a brindar: “salud”.
 
(arredores de LOGROÑO / Espanha - dezembro de 1976 )





























































































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