Certa vez, visitando a cabina de um imenso avião, informou-me o piloto que ele perde massa corpórea a cada viagem. A exaustiva atenção necessária aos instrumentos de comando, lhe gasta o próprio corpo, pois tem de observar e dirigir dezenas de pontos de controle em seu monstro alado.
Cá, hoje, em meu insigne e terrestre ônibus apartamento, somo quarenta destes, a me exigir atenção. E, se em menor tensão, certamente em maior aprazimento. Alguns destes comandos exigem movimento do meu corpo, outros apenas rotam os olhos. E tem também os que sensibilizam os ouvidos, ou outros sentidos ainda menos tangíveis, como a memória, a saudade, a expectativa...
Tenho aqui retrovisores, tais magníficas telas de radar, pedais sincronizados em enérgico jogo de caminhar parado, ponteirinhos a comentar a velocidade, rotação da máquina, quantidade de combustível, distância percorrida. Rolinhos de números correm sem parar - tal o percurso de minha vida - e desfilam algarismos sem fim.
Los Caracoles – Chile - 2012
Seguro firme a grande e negra argola da direção, desviando os buracos da via danificada, teimosa quanto a do meu rumo, a evitar os obstáculos da minha existência.
Alavancas longas e curtas, aqui e ali, uma pisca a ultrapassagem, outra muda a marcha. Trotes curtos, galopes longos à centena de sonoros e vigorosos cavalos que me tracionam...
Sons às dezenas. De válvulas reguladas ou ventos barulhentos. Alguns curtos e triviais comentários, outros longos assuntos com a amada navegadora, ou distantes vozes das curtas ondas da Rádio Guaíba de Porto Alegre, companheira de sempre.
Cheiros de flores dos matos passantes, fecais das vacas do caminhão à frente, bicho morto estupidamente atropelado, fumaças das secas criminosamente queimadas...
À noite, vez em vez, meus olhos conferem o festival de luzinhas do painel. Delicadas, azuis, vermelhas, verdes e amarelas, lembram luminosas alegorias do natal cristão e informam sobre o sistema de freio, pressão do lubrificante, funcionamento dos faróis, proteções de segurança, ...
Puxo, empurro, torço, aperto botões funções que ligam, acendem, lavam e limpam o pára-brisa, berram buzinas...
O cinto diagonal aperta-me a segurança, minha coluna tende a arquear, reacomodo-me. Auto avalio-me a cada ação e regozijo-me no poder. As decisões intermitentes e acertadas, alimentam meu ego ao exercitar meus sentidos. E o comando do veículo me oferece imponência. Neste trono sou o rei sobre as toneladas desta morada rodante.
Minha fiel comissária de bordo, doce anjo de minha guarda, oferece água gelada, guloseimas e biscoitos salgados, alerta pela chegada dos inesperados quebra-molas, sempre vigilante aos traiçoeiros radares.
Os frios e calores têm, na porta, manivelados seus ventos. Outros ares inferiores aventam as canelas por baixo do painel. Os laterais circulam e os esfriados superiores balançam os poucos fios que na “torre” ainda me restam.
Visuais? Oh! Fantásticos, coloridos pelos deuses, tridimensionados por mim, vou saboreando e deixando-os para trás, ao percorrer o fugaz e acinzentado tapete desleixado e cariado. Ficam no passado, gentes, vacas, cavalos, crianças, cachorros, pássaros, andarilhos,... Pisco luzes ao alertar colegas passantes, buzino-lhes cordialidade,...
Schonau – Horben (Alemanha) 2013
Por fim, a ansiedade da chegada na comunhão, indescritível sensação de encontrarmos vivos, alegres e felizes os nossos queridos amigos, nos impulsiona e resume o motivo deste árduo e fascinante deslocamento, na majestade do percurso.
Prof. Darlou D’Arisbo (Dan) 07-03-2014
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