domingo, 4 de junho de 2023

O Jornaleco da Villa - (VillaNews) - Estórias da Villa II

 

 Obs.: Vide "Elucidatius" na primeira publicação Estórias da Villa (I)

Pois, por muitos e longos anos, a Villa sobreviveu sem jornal. Entretanto, numa bela noite de lua cheia, após a semanal reunião noturna na Loja dos irmãos Capra Hircus, os fraternos aliados resolveram inventar um jornal. 

Na manhã seguinte, no Habeas Corpus Café (compulsório e matutino encontro), após irrefletida decisão conjunta, resolveram organizá-lo. E, pior, alardearam aos ventos distribuí-lo na próxima segunda quarta de junho, aniversário do alcaide, o Dr. Sapien Tisat. 

Porém, como ainda em maio só tinham assunto aprovado de meia página, protelaram para após o fim do inverno, quando já estariam filiados os candidatos ao almejado sufrágio da alcaidaria, um tema quente para as noites frias.

Foto de J. Niépce empoleirado na lendária Acácia

Numa reunião seguinte, afirmou o aposentado Coronel Geheime Blitzkrieg, ex-comandante da Jefté (Young Scouts), em timbre de locutor de rodeio, que, para imprimi-lo com sucesso, haveria necessidade de apenas três coisas: um péssimo equipamento, um medíocre corpo de colaboradores e um sensacional e palpitante assunto.

Em menos de onze semanas, o desacreditado equipamento estava completo, incluindo peças que hoje nos pareceriam assaz curiosas.  Havia uma prensa de espremer torresmo que Dona Ultra Petita, mãe do vigário Meher Licht, trouxe de Santarrosainterland e um engradado de minúsculos tipos metálicos (alguns ainda góticos) que teriam sido reutilizados na Revolução Farroupilha.  

A imensa máquina de escrever (entenda-se catamilhografar), pesada e preta, cujo mecanismo lembrava os metálicos intestinos de um bonde, foi cedida pelo juiz de paz, Dr. Cedant Toga Armae.

Semelhante, nas mãos do autor

O corpo de colaboradores foi-se aos poucos formando, incluindo nobres autoridades da Villa, como o Dr. Aut Caesar, rábula da intendência e diretor do Gimnásio Casus Belli e sua esposa Aut Nihil, manicura do Bas Fonds Saloon, que prometeram responsabilidade sobre a revisão dos conteúdos. 

Tinha também o pastor Pluralia Luther Tantum, emprestado da comunidade de Tigerbach, um notável e insigne defensor da moralidade que, embora não pertencente à distinta e secreta plêiade, foi adotado pelas suas patentes qualidades.  Os apetitosos docinhos alemães preparados por sua esposa, tão doce quanto eles, interrompiam por sedução todas as extraordinárias reuniões vespertinas.

O professor Sehr Rauchend, teuto de nascido, letrado e neófito, foi encarregado da edição das matérias, mas como poucas lhe chegavam, acabou por desempenhar mais uma página: “Ad Argumentandum Tantum”, um apimentado heterogêneo relatando a desordem social, a menosprezada filosofia e a olvidada moral vigente.

As mulheres, ainda que inconcernentes à confraria base, também integraram o corpo editorial.  As gêmeas Sister e Shwester, cozinheiras do Hotel Alameda, escreveriam gostosas receitas de carne de porco, bicho abundante nos arredores minifúndios da Villa.

A assassina arma do Doutor Oldcastle

Importante era a caneta tinteiro do velho Oldcastle (Big Brother), que, nem velho nem castelar, dentre os bons, o melhor. Traria os brados contra as inadequações da produção agrária, malhava as extensas plantações de fumo: “Mandioca em lugar de fumo”, afirmava.

Na página policial, cognominada pelo Padre Virgulino de “Furandi, laedendi et necandi”, os afros Gibão-boa-fala e o Ataliba, tal engrenagens irmãs, traziam os acontecimentos policiais. Enquanto o Giba trazia as quentes, o Liba enfeitava-as com flores, chumbos e sangues, como se ao microfone da Regional (o popular GibaLiba de todas as manhãs), a emissora do estimado doutor Durvallino.

No festivo lançamento da primeira edição, no engalanado coreto do meio da Praça Central, com as autoridades presentes, foi muito aplaudido o oratórico discurso proferido pelo centurião estadual, em visita ao decurião municipal, o qual sensibilizou por demais a plebe semialfabetizada e pouco leitora, lacrimejando as solteironas e viúvas. Vociferou ele com o indicador em riste:

Com o braço esquerdo erguido, o polegar e o indicador insinuavam uma letra

“Aos atributivos pormenores da inigualável e ínfera cânula dos anais epopéicos contemporâneos, não nos sublimaremos pelos perplexos desânimos fitófagos obstrucionistas, pirilampeando nos enfadonhos trâmites dos genótipos projetantes e representativos...”

Nos dias seguintes, os primeiros exemplares foram, em lombos de burro, entregues às lideranças, em ordem decrescente de importância. Inversamente a esta lógica, as ponderações e críticas (algumas impetuosas), instalaram-se em rápida proliferação.

As soluções apressadas de última hora conspurcaram a pretensa e tranquila atuação do periódico. Ao copiar as fotos, avessaram o negativo do Coronel e apareceu ele, na primeira página, em continência esquerda, recebendo do General virado, a medalha sinistra no peito errado, com um aperto de mãos sestras, sob a bandeira invertida à frente de uma sonora banda de canhotos. 
 

E o nome do jornaleco, que deveria ser Anschluss, insistido pela colônia italiana para “Faccioni”, acabou por Editio Princips (Latim: primeira edição), mas foi incorretamente grafado com “Edilio Príncipe”, o que provocou injuriosa reação pelo representante da família imperial da Villa, sogro deste homônimo citado.

Enfim, o sucesso do empreendimento não residiu em sua intenção informativa, que teve em sua primeira, a última edição. Mas intentou positivamente no sentido de despertar da consciência comunitária e da cidadania. Algo como um malogro sensivelmente benéfico.

A partir do episódico da confraria, recrudesceram as adversas opiniões, os debates intensificaram, aliaram-se simultâneas e antes desconhecidas ideias concorrentes...

E a imprensa marrom da Villa então prosperou, assim como as tantas nuances policromáticas.
 
Mas foi o início da abissal  e perturbadora dicotomia das classes humanas, distinguidas entre "os que leem e os que não leem."
 

Prof. Eng. Darlou D’Arisbo

junho de 2023