terça-feira, 19 de março de 2024

O Café da Etérea Vizinha - Da série "A Mensageira II"

Há alguns anos, numa tarde chuvosa e fria, estava eu solitário e recolhido no interior do motor home, lá no Camping de Foz do Iguaçu.  Eu lia algum assunto sem graça, quando vi, pela janela lateral, a chegada de mais dois campistas, num pequeno automóvel.
 
Era um jovem casal de calouros que, apesar da chuva, ambos empenharam-se a descarregar o carro e montar a imensa barraca.  

 O céu, ameaçando restaurar a vegetação

A tarefa deles, simples e corriqueira em tempo seco, constituiu-se em barulhento desafio.    Sacolas coloridas, canos de estrutura, sacos de alimentos, fogão, bancos, roupas, corriam em rodízio, transportados pelo par de pintos molhados, ora retirados do bagageiro e colocados no interior do veículo, ora a incoerente inversão.
Palavras de ordem em diversos timbres logo se fizeram ouvir.   E os invisíveis e travessos duendes da confusão, aos poucos tomavam conta do caos das ferragens, renitentes em não encaixar para montar a difícil e teimosa tenda.

Decidi então ajudá-los e realizar mais que apenas uma boa ação. Fazer o que eu gostaria que fizessem comigo em tais adversas condições meteorológicas.
Sem quaisquer apresentações, atraquei-me com eles na montagem da grande barraca de dois quartos, cozinha, e muito supérfluo equipamento.  
 
Enfim, após longo tempo, nós três, encharcados, demos conta do recado, ao apertarmos as mãos molhadas em cordial cumprimento.   Prometemos nos encontrar na cantina, mais tarde, para saborear uma merecida cerveja.

Ao voltar ao meu motor home, tiritando de frio, preferi tirar a camiseta sob o toldo e secar-me antes de adentrar.
Porem, para minha absoluta surpresa, surgiu-me ali, de repente e sem qualquer ruído, uma simpática senhora.   Tinha olhos brilhantes, um sorriso contagiante e vestia uma túnica branca, com capuz acinzentado.  Estava descalça e, com as duas mãos, segurava uma xícara de aromático café quente.
Disse-me que admirou minha generosidade para com os novos vizinhos, motivo pelo qual me trouxe o oportuno e delicioso café.

 Café: mentor da gratificação cerebral

Não entendi de onde veio e como apareceu ali, repentinamente, a um metro de mim, tal simpática mensageira de Deus.  E, tomado de assombro, não me saiam as palavras de agradecimento.
Embora minhas cordas vocais tenham conseguido só balbuciar um simplório “b.. brigado”, juro que meu cérebro preparou mais. Uma retribuição com mais e melhores palavras.   Algo como:

“Distinta e nobre senhora, eu não sou merecedor de tamanha gentileza.  O auxílio que prestei aos nossos recém chegados vizinhos, não justifica seu tamanho sacrifício.  Em pés nus na grama lamacenta, submetida aos rigores desta fria chuvarada, mãos a embalar tão singela porção quente e restauradora...   Nego-me a sorvê-la!   Vou sim guardá-la a mil e uma chaves,  por sete séculos, tal joia líquida, para minha eterna admiração...  
E que o bondoso Deus, em Sua infinita bondade, me permita lembrá-la, qual celestial criatura - um surpreendente anjo - a evocar-me a cada boa ação... tão poucas o faço.”
 
O calor do presente no líquido tangível
 
Mas o sublime inesperado bloqueou o procedimento mental e impediu-me de proferir tais doces palavras.

O dia seguinte amanheceu ensolarado, com límpido céu de brigadeiro.
Tentei em vão encontrar a tão gentil senhora, para agradecê-la. Percorri os locais próximos, perguntei aos demais vizinhos, porem sem sucesso.   
 
E, ao perguntar ao Guarda Camping, informou-me ele, claramente espantado com a história, que tal pessoa e conforme minha descrição, não estivera presente no camping.

Espero um dia poder encontrá-la, etérea vizinha, para retribuir tal notável e inesquecível gentileza.  

Neste ou em algum mundo destes.
             
Darlou D’Arisbo - setembro de 1995

 

terça-feira, 10 de outubro de 2023

O Pingente Estetoscópio - Da série "A Mensageira" - I

Em minha longa jornada de vida, já passada dos três quartos de século, uma infinidade de fatos foi agrupada em meus 97,431 bilhões de neurônios, número este relativo à média das quantidades propagadas por dezenas de cientistas discrepantes.

Alguns destes memoráveis fatos estão ali na transbordante caixinha das emoções, como o casamento, o nascimento dos filhos, das netas e tantos outros...

Mas, dentre estas gavetas da mente, uma delas, como se tivesse uma etiqueta azul, é destacada pelo seu inusitado conteúdo.

O armário das memórias

Em especial, guarda ela no seu inesquecível conteúdo, ocorrências reais, tangíveis e inexplicáveis, acontecidas nas estradas de minha existência.
Consistem em surpreendentes aparições, que me ocorrem a cada intervalo de vários anos.

E todos os acontecimentos acervados nesta “gaveta” possuem algo em comum: revelam a presença súbita de uma senhora idosa, simpática, de olhos brilhantes e, que sempre me oferece algo tangível, como um regalo presente e inesperado.

Assim, já relatei algumas em publicações, como:"As meias amarelas e a vovó Beatriz" (Publ. 019)”, “O café da etérea vizinha (Publ.015)” e outras.

Pois desta feita e sem mais delongas, percorria eu com a esposa, a passeio, com nosso motorhome, os retos e longos caminhos da Patagônia Argentina. 

Na região, as rodovias parecem não ter fim


Com muito calor e fatigados pelos longos trecho, encontramos uma única bela sombra à frente de um pequeno posto de saúde, longe da cidadela.

Ao estacionar, vislumbrei uma senhora, sentada na entrada do prédio, e fui perguntar se ali podia estacionar para descansarmos um pouco.
Ela estava absorta, tricotando e não demonstrou surpresa ao me receber. E ao erguer o rosto, pareceu-me já a conhecer de outras paragens.

A ímpar e estratégica presença humana na região.

Respondeu-me afirmativamente e mencionou, fitando-me diretamente com olhos muito brilhantes: “Meu nome é Sofia, sou atendente deste posto médico”.

Para eu retribuir em palavras a sua cordialidade, informei que minha neta, com idade seis anos, também possui este lindo nome.

Então, para minha espantosa surpresa, ela se levantou, abriu sua correntinha de prata que tinha ao redor do pescoço, e retirou dali o pingente em forma de minúsculo estetoscópio, o qual entregou-me, dizendo:

“Dê-lhe como presente, pois ela vai cursar medicina”.

O sublime momento me fez guardá-lo com carinho
 
Perplexo, embasbaquei, estendi a palma da mão e, com dificuldade pronunciei o simplório: “Obrigado, ela vai gostar”.

De imediato, despediu cordialmente e com o mesmo sorriso irradiante, sentou-se e voltou a tricotar, como se o fato lhe fosse rotineiro.

Um anjo, tangível e sorridente

Por vários dias tentei estabelecer um raciocínio circunstancial lógico, porém sem sucesso.

Conclui que tal personagem existe, com aparições intervaladas e, dentro daquela estrutura física e morfológica de uma simpática idosa, há um organismo indecifrável e com a faculdade de emanar alguma energia benfazeja que adoça os sentimentos e a emoção.

Assim como nas outras oportunidades que me apareceu, sua configuração sempre foi diferente, mas a admirável empatia e a luminescência dos olhos repetiram-se idênticos.

Esta personagem não é apenas uma senhora, é um ente, um anjo, um mensageiro Dele. Pois como declarou um querido amigo, a coincidência é um dos apelidos de Deus.

Já a recebi algumas vezes e espero encontra-la em outras tantas... 

Prof. Darlou D'Arisbo
janeiro de 2020

Pensamento do dia: 

As bibliotecas egípcias eram "tesouros dos remédios da alma", pois que nelas se curava a ignorância, que é a mais perigosa enfermidade e causa de todas as outras.



Obs: Imagens do armário e da senhora obtidos da internet, de domínio público, sem direitos autorais.