Eu trabalhava como orientador de
planejamento urbano e aplicação de recursos federais em várias cidades do oeste
catarinense. Num destes meandros, conheci a Bea, que viajava em ônibus e realizava um estudo
sobre evasão escolar na maioria dos mesmos municípios. Em algumas ocasiões, coincidíamos
o roteiro e viajávamos à noite entre as cidades, no meu carro, para cumprir o
longo cronograma em curto espaço de tempo.
Mas, por vezes, a meteorologia era adversa e o deslocamento perverso.
The sky spilled
Pois, numa noite fria, agravada
pelas rajadas de vento, a chuva descia abundante. Mal os limpadores conseguiam “varrer” o
para-brisa. Eu conseguia ter a visão
parcial da estrada apenas no curso espaço de tempo após cada “varrida”. O carro percorria seguro em marcha reduzida e
velocidade baixa, pela estrada lúgubre naquela região serrana.
O inverno marcava presença
rigorosa e, assim como quase todo o gênero feminino, minha companheira de
viagem reclamava de frio nos pés.
Havíamos esvaziado a garrafa
térmica de café e procurávamos, na próxima cidade, um sonhado hotel com banho
quente e cama repousante.
Mas as horas passavam, a noite
corria, a chuva continuava e não observávamos a menor luzinha no
horizonte.
Quando abrandava a chuva um véu
de neblina cobria a estrada, dificultando ainda mais a visualização e
aumentando o perigo de encontrar algum animal, objeto ou pessoas na pista
escura.
A “Bea”, semi acocorada no banco
direito, tentava aquecer os pés com as próprias mãos e ajudava a me orientar
naquele breu noturno.
Era comum ouvi-la: “acho que é
curva à direita” ou “cuidado, está no acostamento”. O mais comum era “meus pés continuam
gelados!”
Mas lembro-me que, após uma
pequena curva à esquerda e subindo, havia uma reta rodeada de vegetação, foi
quando a Bea elevou bruscamente a voz:
“É uma pessoa, fazendo sinal,
pááára!. Pááára !
Poderia ser apenas alguém
solicitando carona, porem, naquela tardia hora da noite, com chuva e em local
remoto, a hipótese maior seria de acidente, e alguém pedindo socorro.
Embora com a baixa velocidade, ultrapassei-a propositadamente, parei pouco adiante e, cautelosamente retornei em ré, até alinhar a porta
direita com a tal pessoa.
Era uma senhora, abrigada apenas
com uma espécie de capa acinzentada com um lenço sobre a cabeça.
Acendi a luz interna e a Bea
abriu uma parte do vidro, para podermos visualizar seu rosto e saber o que
desejava.
Surpreendemos em ver a solitária idosa, com
feições angulosas, nariz proeminente, pele alva e rugosa. Tinha os olhos muito
brilhantes, como se emanassem deles um tênue irradiado azul.
Perguntei a ela se necessitava de
ajuda. Respondeu-me, em voz agradável e
gentil, que estava ali à margem da estrada para oferecer um par de meias longas
e grossas.
Incrédulos, e antes de proferirmos
qualquer palavra, ela enfiou pela fresta do vidro o par de meias amarelas,
protegidas pela sua capa, e que caíram no colo da Bea.
Perguntamos, quase em coro, como
ela sabia que estaríamos ali, naquele momento, mas uma forte e repentina
neblina surgiu e desvaneceu a imagem da simpática senhora, como se ela tivesse
flutuado no sentido da vegetação.
Dei partida no carro, sob o olhar
perplexo da Bea, com as meias nas mãos.
“Por favor, convença-me que foi
um sonho, um devaneio!” disse-me.
Com suas meias vestidas e os pés
aquecidos, cerca de uma hora após, chegamos ao destino, uma cidade de pequeno
porte e com razoável hotel.
Após o merecido banho quente, ela
vestiu novamente as quentes meias e, em tom inquiridor e olhar receoso,
perguntou-me:
“Você e a idosa planejaram isso?”
“Foi um sonho, durma, você está
cansada!” respondi.
O dia seguinte amanheceu com céu
límpido, embora com baixa temperatura, assim como os demais.
Conclui o trabalho em uma semana,
dentro dos limites estipulados e voltei para Curitiba. Antes disso a Bea retornou para Brasília.
Tempus Fugit
Ontem, cinco décadas depois,
recebi um telefonema dela e, dentre outras lembranças, comentou alegre:
“Você lembra das meias amarelas?
Pois elas são indestrutíveis, já abrigaram os pés das minhas duas filhas e,
agora, estou aguardando que minha neta cresça o suficiente para também
utilizá-las... Acho que não foi um
sonho!
Expliquei-lhe que, naquela noite,
meu anjo da guarda havia conectado com o respectivo da tal idosa e assim,
convencido-a a presentear as meias, que serviriam a muitas gerações, desde a
jovem, agora vovó Bea.
Nem comentei que a tal idosa tem
me aparecido a cada década, sempre com inesquecíveis regalos, alguns já
relatados, como o episódico “O melhor dos vinhos”, descrito em meu livro.
(As quimeras cromáticas realçam o ficcionista sabor da realidade
tangível)
Darlou D’Arisbo - julho de 2016
Nenhum comentário:
Postar um comentário