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A força, a beleza, a arte, a ciência e as virtudes constituem-se em valores infinitamente grandiosos, embora imateriais, formando a consistência de nossa individual espiritualidade. É a institucionalizada dualidade entre as ações físicas e as espirituais, que forma tensão de variáveis intensidades e sentidos. Certamente é esta a mais antiga e radical causa que divide os humanos.
Vejamos, pois, o exemplo de uma vela:
Quando acesa num ambiente escuro, ela inunda o ar de sentidos, dá cores e formas a todos os objetos. Revela as tantas expressões de nossas faces, o brilho de nossos olhos e mentes... Tal um ímã, atrai e completa os nossos espíritos, anima nossas mentes, traz as letras do que desejamos ler, apresenta tudo o que queremos procurar, ilumina nosso caminho. Sua energia invade nossa alma e sua luz excede aos lógicos princípios das ciências.
A vela acesa configura a luz, o espírito e o calor da vida. Sua chama representa a grande fonte de energia que transforma e revigora todas as matérias existentes no universo.
A diferença, pois, entre uma vela acesa e uma apagada não se resume apenas na sua chama. É sim, substancialmente incomparável.
E, navegando neste mar incorpóreo, o conto que segue, foi laureado no 25º Concurso de Contos Paulo Leminski, para meu intenso júbilo e de todos os que me honram visitar e ler minhas despretenciosas letras..
A boneca azul e o forno da solidão
Depois de um estafante dia de trabalho, sigo diligente os meus noturnos passos, cadenciados e alinhados sobre a cerâmica polida, a qual reflete o voo das fluorescentes do teto, rasantes e acesas, contrárias ao meu curso. Neste corredor vazio do labirinto hospitalar, sigo a rota para o aconchego do merecido descanso no reduto dos meus sonhos.
Ouço ainda os reverberados e decorrentes sons de dores, choros, agulhas, gemidos, macas, soros e sangues das mal dormidas outras noites.
O movimento levemente ondulado a cada passada, induz meus olhos a acompanhar, naquele chão reluzente, os coloridos ladrilhos desencontrados, geometricamente simétricos, de onde erguem-se as austeras e metálicas portas. Elas envolvem-me rangendo e passam, como se não fosse eu o seu preferido petisco. Perfilam-se grades e correm para trás, aos meus passos, em rígidas filas militares.
Meus olhos varam uma colorida prisão de pássaros inocentes e engaiolados em meio a flores murchas no jardim contíguo à enfermaria infantil. Ameaçam meus ouvidos, com os trinados de protesto. Esvoaçam eles, doidos elétricos e em vão, a tentar sacudir os poleiros rígidos. Choram a falta da liberdade dos céus e o embalo dos ventos. Rápidos e bruscos, estancam seus brados quando ouvem o grito de uma criança. Reverberado clamor, em gozo e vitória do atendente sonolento, ao enfiar a agulha no desespero de uma carne infantil. Rasga as vivas e tenras fibras, a pendular a seringa tal um badalo de sino, ante o esperneio agitado e o choro sufocante da insignificante vítima.
Ao atravessar o tal florido, minha mesma mão que torceu as polidas e contaminadas frias maçanetas, acaricia agora as mornas pétalas do manso canteiro de flores orvalhadas a também deslizarem para trás. Como foram, estão indo e irão todos os meus luzentes dias.
Rompe-se a perspectiva linear num quebrar silencioso: dobro à esquerda no sombrio corredor.
Troco então as doenças da primeira classe pelas agonias da segunda. Barbudos, barrigudos, desnutridos, semimortos. Fiapos de gente, mal embrulhados em enodoados coloridos e puídos panos velhos.
Formam uma galeria de quadros diferentes, cada qual uma dor estranha, com variados formatos, cores, tamanhos, súplicas e odores. Comuns e exatamente iguais nos olhares.
Seus olhos sugerem vagas flechas de cristal morto que me alvejam e me sentem fisgado até que me afasto, além dos limites de uma porta sem folha.
Manifestam-se tais corpos de combustão morna, assim como a sopa que receberam.
Um “boa noite doutor”, feminino e sussurrado, vaza minha emoção dissimulada. Meus passos são mais rápidos que a difícil resposta.
Outra massa inerte e horizontal, com o semblante confundido ao próprio branco e amarrotado lençol que pouco cobre, desliza na maca empurrada pela atendente. Mais um peso disforme e fraco. Como se o próprio espírito dele se tivesse divorciado e ficado apenas o corpo, num leve balanço ao movimento das rodinhas no ritmo das emendas do piso.
Percorro o grosseiro depósito que regurgita emanações voláteis, envolvido por múltiplas cores, na miscelânea química dos alcoóis, bálsamos, purgativos, bismutos, quininos, sulfas, antissépticos,... Tão calmantes como excitantes. Em todas as formas e texturas sólidas ou gasosas, líquidas ou gosmentas, eles mantêm engatilhada sua estudada diagramação visual, à espera que o consumidor bicho homem comprometa o fígado para, feliz, salvar os brônquios; destrua o estômago para, contente, preservar o coração e assim por diante.
Esbarro na auxiliar nojenta, obesa e desajeitada, tanto quanto a indigesta notícia que me dá:
“ Morreu a criança do Funrural”.
Prometo dormir com a imagem de seu meigo e debilitado sorriso de anteontem, quando lhe dei uma boneca pálida, com vestidinho azul.
Três passos à esquerda e a chave do meu humilde aposento está escondida na báscula do sanitário.
Temporário e quente cubículo, qual um forno da solidão. Meu noturno e leniente cárcere de paredes anil. Tal azul a única boneca da criança menina.
Dormirei tão quente quanto sua febre, e tão só quanto sua alma.
A ilha da imagem não revela o mar do conto (DD 2014)
Saudável reflexão do dia:
“O orgulho não é mais que um edema, é grande mas não é sadio” (Santo Agostinho)
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