domingo, 9 de julho de 2023

A inesquecível companhia - Estórias da Villa IV

 Obs.: Vide "Elucidatius" na primeira publicação Estórias da Villa (I)
 
Já fui mais velho quando vim para cá, mas insisto em continuar morando aqui. Isto por que esta região da Villa, com sugestivo nome: "Mangel an Licht" (falta de luz), é um lugar aprazível para se morar, onde todos os cinco bons sentidos da natureza ainda se fazem aqui, deliciosos e presentes.

Vivo numa antiga casinha cômoda e tranquila, imersa num bosque paradisíaco, onde energias positivas emanam do subsolo e gnomos correm pela madrugada a plantar coloridos e perfumados cogumelos.
Único lugar no mundo, onde letras luzidias caem do breu do céu noturno, tais quais floradas, ficam então deitadas coloridas na relva úmida, luminescentes e disponíveis, para que um velho careca e preguiçoso como eu, nem careça procurá-las.
Basta passear sob aquele céu estrelado, que eu sei: tais astros não são estrelas, mas sim potentes e luminosas emissoras de letrinhas, as quais estas, tais flocos, aos poucos tomam conta da minha imaginação.


Aqui o céu emana luz benfazeja

Quiçá penetradas pelos poros de minha calva, aninham-se em magnífica ordem nos meandros dos meus labirintos cefálicos.
E de posse desta dádiva celestial, o mínimo que eu podia fazer, era escrever.  E escrevia.

Mangel an Licht é uma região mal atendida pelo abastecimento elétrico, onde a dualidade do choque energético, coloca de um lado as emanações das forças celestiais, cobrindo tudo de cores, formas, vida,... E de outro, as intempestivas maquinações da noturna bruxa tecnológica, a infernizar de mórbido negro e a quebrar os todos ritmos vitais.

Eu sobrevivo escrevendo artigos para um periódico da capital e, nas vagas horas, um livro, relatando também as tristes decorrências da intermitente falta de energia elétrica.
Embora possua um computador atualizado, porém, como imediato resultado dos inconvenientes cortes de energia, fui obrigado a trabalhar numa vetusta máquina de escrever “Corona Kowid”, minha preferida, pela existência de castiçais laterais, com velas para a óbvia utilização noturna.

Corona, minha companheira

Uma vez, eu tentei instalar na velha máquina um sistema de iluminação com pilhas, mas seus sacolejos rompiam os delicados filamentos das lampadinhas.
Assim, além de funestamente preta, ela lembra um macabro ataúde, toda pingada de vela. Instalei até um suporte, abaixo da tecla dos espaços, para a caixa de fósforos, permanentemente aberta.

A minha baixa remuneração ainda é suficiente para adquirir, além de outras coisas menos importantes; sabão, gasolina, alimentos e velas. Muitas velas.
Bem mais do que os cinco pacotes mensais de velas, em equivalência financeira, que o presidente da Companhia de Luz citava pela televisão, na época, para fazer o tão almejado suprimento de energia.

E, justamente por isso, meu filho não conseguia entender se o negócio do presidente da Companhia era o próspero comércio de velas ou o seu precário serviço de abastecimento energético.
A mística fonte de luz 
 
Minha agastada esposa, embora invejável criatura, no limite de sua esgotável paciência, não suportou a retrógrada situação de falta energética e pediu o divórcio. Afinal, ela jamais podia ter a certeza da utilização de quaisquer eletrodomésticos. As interrupções elétricas desandavam bolos, novelas, vitaminas e roupas lavadas na máquina.

E seus longos e belos cabelos tiveram de ser cortados, pela dificuldade em manter um secador, secando-os. Som, só o do carro, quando ela remendava nossa roupa, com agulha na mão, sob a noturna luzinha do teto.

Uma vez jogou-me, furiosa, o depilador elétrico que lhe presenteei na noite do dia das mães. Tive sorte, ela não me acertou, por que no momento certo, faltou luz. 

Remendando nossos trapos sob os tênues lumes
 
Banho, nós só tomávamos frio, e com alguém manivelando a bomba manual, pois a elétrica era cúmplice da concessionária. E o ferro de passar, era um suplício, pois bastava aquecê-lo, para a Companhia esfriá-lo. Era o tempo certo. Além do que, nossos trajos demonstravam feias cicatrizes de queimaduras, pois que no meio da noite, a Companhia ligava e queimava roupas, pelo nosso escuro descuido de deixar o ferro elétrico sobre elas.

Aliás, era grande a correria noturna, quando voltava a energia elétrica. A bomba do poço, intempestivamente acordada na madrugada, vazava a caixa d’água, apodrecendo o forro e inundando a casa. Os cachorros de toda a vizinhança, subitamente despertados pelas lâmpadas externas, unissonavam fantasmagóricos uivos pela noite alta. E as crianças eram carregadas da sala de televisão, onde adormeciam tentando ver um programa inteiro.

Agora moro sozinho. E já estou me acostumando às faltas da Companhia.

Justamente ela, em suas tantas e desavisadas faltas, me faz atribuir o devido valor à sua infrequente presença. Paradoxalmente, bendita seja a falta da maldita.

Post Scriptum: Na audiência, o juiz só acreditou no estranho motivo da separação, quando ela esposa, durante a tentativa de reconciliação, afirmou aos brados e com o indicador em riste, que não me queria mais.. Nem iluminado !

...nem iluminado !







 
Reflexão do dia: "Quanto menos as pessoas souberem como se fazem as leis e as salsichas melhor dormirão à noite."  Otto von Bismark
 
 
 
Prof. Eng. Darlou D'Arisbo


Nenhum comentário:

Postar um comentário