sábado, 13 de agosto de 2016

As meias amarelas e a vovó Beatriz - 019

Um fato bastante curioso me ocorreu na década de setenta.   
Eu trabalhava como orientador de planejamento urbano e aplicação de recursos federais em várias cidades do oeste catarinense.  Num destes meandros, conheci a Bea, que viajava em ônibus e realizava um estudo sobre evasão escolar na maioria dos mesmos municípios. Em algumas ocasiões, coincidíamos o roteiro e viajávamos à noite entre as cidades, no meu carro, para cumprir o longo cronograma em curto espaço de tempo.  Mas, por vezes, a meteorologia era adversa e o deslocamento perverso. 
 
 The sky spilled
 
Pois, numa noite fria, agravada pelas rajadas de vento, a chuva descia abundante.  Mal os limpadores conseguiam “varrer” o para-brisa.  Eu conseguia ter a visão parcial da estrada apenas no curso espaço de tempo após cada “varrida”.  O carro percorria seguro em marcha reduzida e velocidade baixa, pela estrada lúgubre naquela região serrana.
O inverno marcava presença rigorosa e, assim como quase todo o gênero feminino, minha companheira de viagem reclamava de frio nos pés.

Havíamos esvaziado a garrafa térmica de café e procurávamos, na próxima cidade, um sonhado hotel com banho quente e cama repousante.
Mas as horas passavam, a noite corria, a chuva continuava e não observávamos a menor luzinha no horizonte. 

Quando abrandava a chuva um véu de neblina cobria a estrada, dificultando ainda mais a visualização e aumentando o perigo de encontrar algum animal, objeto ou pessoas na pista escura.

A “Bea”, semi acocorada no banco direito, tentava aquecer os pés com as próprias mãos e ajudava a me orientar naquele breu noturno. 
Era comum ouvi-la: “acho que é curva à direita” ou “cuidado, está no acostamento”.  O mais comum era “meus pés continuam gelados!”

Mas lembro-me que, após uma pequena curva à esquerda e subindo, havia uma reta rodeada de vegetação, foi quando a Bea elevou bruscamente a voz:
 
“É uma pessoa, fazendo sinal, pááára!.    Pááára !

Poderia ser apenas alguém solicitando carona, porem, naquela tardia hora da noite, com chuva e em local remoto, a hipótese maior seria de  acidente, e alguém pedindo socorro.
Embora com a baixa velocidade, ultrapassei-a propositadamente, parei pouco adiante e, cautelosamente retornei em ré, até alinhar a porta direita com a tal pessoa.
Era uma senhora, abrigada apenas com uma espécie de capa acinzentada com um lenço sobre a cabeça.

Acendi a luz interna e a Bea abriu uma parte do vidro, para podermos visualizar seu rosto e saber o que desejava. 

Surpreendemos em ver a solitária idosa, com feições angulosas, nariz proeminente, pele alva e rugosa. Tinha os olhos muito brilhantes, como se emanassem deles um tênue irradiado azul.

 

Perguntei a ela se necessitava de ajuda.  Respondeu-me, em voz agradável e gentil, que estava ali à margem da estrada para oferecer um par de meias longas e grossas.

Incrédulos, e antes de proferirmos qualquer palavra, ela enfiou pela fresta do vidro o par de meias amarelas, protegidas pela sua capa, e que caíram no colo da Bea.  

Perguntamos, quase em coro, como ela sabia que estaríamos ali, naquele momento, mas uma forte e repentina neblina surgiu e desvaneceu a imagem da simpática senhora, como se ela tivesse flutuado no sentido da vegetação.

Dei partida no carro, sob o olhar perplexo da Bea, com as meias nas mãos.

“Por favor, convença-me que foi um sonho, um devaneio!” disse-me.

Com suas meias vestidas e os pés aquecidos, cerca de uma hora após, chegamos ao destino, uma cidade de pequeno porte e com razoável hotel. 
Após o merecido banho quente, ela vestiu novamente as quentes meias e, em tom inquiridor e olhar receoso, perguntou-me:

“Você e a idosa planejaram isso?”

“Foi um sonho, durma, você está cansada!” respondi.

O dia seguinte amanheceu com céu límpido, embora com baixa temperatura, assim como os demais.
Conclui o trabalho em uma semana, dentro dos limites estipulados e voltei para Curitiba.  Antes disso a Bea retornou para Brasília. 
 
 Tempus Fugit
 
Ontem, cinco décadas depois, recebi um telefonema dela e, dentre outras lembranças, comentou alegre:

“Você lembra das meias amarelas? Pois elas são indestrutíveis, já abrigaram os pés das minhas duas filhas e, agora, estou aguardando que minha neta cresça o suficiente para também utilizá-las...  Acho que não foi um sonho!

Expliquei-lhe que, naquela noite, meu anjo da guarda havia conectado com o respectivo da tal idosa e assim, convencido-a a presentear as meias, que serviriam a muitas gerações, desde a jovem, agora vovó Bea.

Nem comentei que a tal idosa tem me aparecido a cada década, sempre com inesquecíveis regalos, alguns já relatados, como o episódico “O melhor dos vinhos”, descrito em meu livro.

(As quimeras cromáticas realçam o ficcionista sabor da realidade tangível)

Darlou D’Arisbo - julho de 2016


terça-feira, 31 de maio de 2016

018 - As cruéis vespas e o desafinado cantor

“É vedada a utilização de quaisquer informações contidas nestas publicações, sem autorização expressa de seu autor, sob pena de indenização judicial.”
 
Um meu dente molar superior direito apresentou patologia atípica, com diagnóstico de fratura na raiz e solução cirúrgica com implante. 
 
Com a intervenção marcada para as 10;00h, cheguei pouco antes, com banho caprichado e dentes bem escovados. Fiquei lendo o livro do amigo Marcos (Folhas Secas) por minutos até que a secretária me atendeu. Trouxe-me um copinho com antisséptico para eu “bochechá-lo”.
 
Logo fui chamado pela assistente para acomodar-me na confortável poltrona da sala de cirurgia. Pintou meu rosto com uma tinta amarelada e cobriu-me todo com um lençol furado, aberto apenas entre os olhos e o queixo.
 
Conversamos um pouco sobre suas filhinhas e logo entrou o douto Acácio (do grego akákios, “sem maldade”). Cantarolando, sorridente e contente, embora fosse uma criança introvertida, fechada quando eu o conheci, desde seus 12 anos. Ainda bem que mudou, cresceu, evoluiu, para orgulho dos seus, incluindo os que usufruem de seu conhecimento aplicado.

Vestiu seus alvos paramentos, observou mais uma vez, minuciosamente, o local do ataque e foi conferir o instrumental.

Então, desafiou meu sexagenário trauma de injeção na gengiva: “é só uma picadinha de pernilongo da chikungunya...” afirmava rindo a cada nova ferroada. Foram umas seis, mas eu contei mais de duzentas picadas de vespas...


Ao aguardar o efeito do limitado narcótico, conversamos causos, até ele notar que eu falava com meia boca. Senti que ele tomou um bisturi e talhou a gengiva, verticalmente, abrindo espaço para entrada de uma esbelta talhadeira de pedreiro. 
 
Passou a golpeá-la com um lindo martelinho prateado, intermitentemente entre o alvéolo ósseo e a raiz do dente, circulando as pancadas. Cada uma causava um terremoto nos meus neurônios, reacomodando-os. Acredito que minhas ideias serão outras após a série de impactos... 
 
Depois da segunda série, prendeu firmemente o dente com o boticão (um diabólico alicate) e atracou-se a tentar arrancá-lo. Senti minha caixa craniana desalinhar, tal o esforço aplicado. Teimoso tanto quanto o dono, o molar negou-se a sair.
 
Então mais uma série de pancadas, enfiando o bisel da talhadeira cada vez mais fundo no alvéolo ósseo, ao redor da raiz. Nova reacomodação dos meus neurônios ao infindável sismo cerebral. Abraçado na minha cabeça enforcada, em esforço oposto, Acácio cantava e suava. O dente desafiou-o mais uma vez e apenas gemeu como taquara rachando. 
Assustador boticão antigo
 
Como, no fim deste segundo tempo, o jogo estava empatado entre o douto e o molar, promoveu-se um terceiro, com mais esforço na pancadaria da talhadeira. Meus dendritos e axônios dançavam frenéticos um desencontrado “rap” maluco. A assistente rezava muda, com seus lindos olhinhos escancarados. O douto tentava enforcar-me com o braço esquerdo esticando meu pescoço e, com o boticão na direita, puxava e torcia a teimosa estruturinha. Imaginei que meu pescoço nunca voltaria ao normal e, para sempre, ficaria como as Kayan Lahwi (as mulheres girafa africanas).

Mas, na prorrogação do terceiro tempo, a “bola entrou” e o molar saiu. O gol da classificação, com a invisível multidão ruidosa aplaudindo de pé.

Acácio ergueu solene o triunfo da vitória, tal a estátua da liberdade, mostrava aos céus seu sucesso contra a teimosia estática do travão alveolar.

Apresentou-me, na raiz do cujo retirado, os detalhes da visível trinca e as formações aderentes resultantes da patologia instalada. Discorreu sobre seus inescusáveis conhecimentos e experiência em tais casos.

Preparou o alojamento de um imenso parafuso metálico (um parabolóide tronco cônico) no maxilar, um buraco tão profundo que pensei iria roçar no meu olho direito. Broqueou, lixou e alinhou a pousada de tão insigne metal, estranho à minha fisiologia. Quiçá emanará radiação benéfica ao meu alimento, à minha alma ou aos queridos que me circundam. 


Possuo uma antiga, movida a pedal! 

Apertado o fixador com seus regulares tantos Newtons (qual aperto dava-se antes deste nascer?), cantarolando a odiosa música da roupa de um tal Pedro, contente, deu-me mais uma extraordinária notícia: como a cratera alveolar era de secção elíptica, seria necessário um preenchimento ósseo nas duas opostas “lúnulas” vagas.
 
E a solução seria simples e fácil, afirmou o douto: retiraria fragmentos ósseos do outro lado do maxilar para recompor este. Tão singelo como retirar terra de um canteiro para colocar ao pé das flores do outro. Amanhã vou realizar tal tarefa em meu jardim de rosas e, observar se ele não vai contorcer-se de dor.

Imediatamente iniciamos a segunda cirurgia: as vespas anestésicas atacaram novamente, agora a bombordo. Repetindo nos detalhes a respectiva descrição anterior.

Logo a boca equilibrou, com os lados equivalentes entorpecidos. A cabeça, ainda sóbria, navegava em nuvens harmônicas e macias.

Três cortes com início comum (um Y) profanaram a mucosa posterior da gengiva esquerda, lá no fundo, após o último da fila. .
Abertas, tais pétalas de carne, um formão com ponta de ralador entrou e rompeu os tecidos aderidos à dureza óssea, despindo e desbastando a rigidez do maxilar.
 

Então o douto, munido de um aprimorado e torturante alicate biarticulado escavador, foi arrancando as frações sólidas e, com uma micro espátula, colocando e socando-as nos espaços alveolares de estibordo. Umas três cargas foram suficientes para nutrir a periferia e fixar na família o metálico bastardo intruso. 
 
“Pronto!”, afirmou o desafinado cantor. Como se o tal vocábulo simbolizasse o fim do empreendimento. Faltava sim todo o acabamento, as muitas suturas nos dois extremos. Foi a vez dos outros vespídeos atacar as esbeltas carnes já acordando da apatia anestésica. Um furo aqui, outro ali, um ponto, uma vírgula, um nó helicóide pela pinça de pressão. A atenta assistente corta cada laço, na precisão exata e os pacotes começam a receber minúsculas gravatinhas borboletas. São presentes que recebo hoje, pois que amanhã serão passado.

O douto cantor (morreria de fome, fosse só cantor), demonstrou todo seu proficiente conhecimento, sua habilidade e competência em mais de duas horas de estafante e vitorioso jogo.

E, para finalizar, nada melhor que derivar sobre nada a ver. No caso, falar sobre os malfadados problemas da indústria aeronáutica brasileira....

Darlou D’Arisbo – 20 de maio de 2015
(O conto é verídico, as gravuras fictícias)