sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Dona Solidão e o Eu Sozinho

Serão eles personagens conflitantes, similares em suas essências ou tipicamente distintos?

O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) afirma em “Ser e Tempo” que estar só é a condição original de todo ser humano, pois cada um de nós é único no mundo.

Continuando tal asserção, imagino que, cada pessoa, ao nascer, traz consigo um imenso diário em branco, preenchendo aos poucos, para tornar-se um livro ímpar, inédito e exclusivo. Assim, somos oito bilhões de livros dispostos e vivos na capa desta imensa esfera mundana. 

O farol, seja dia ou noite, é imponente e solitário

Nietzsche, também filósofo e não menos tedesco, proferiu a memorável locução: “Não venha roubar minha solidão, se não tiver algo mais valioso para oferecer em troca.” 

 “A pior solidão que existe é darmo-nos conta de que as pessoas são idiotas”, do Gonzalo Torrente Ballester, espanhol, é uma sentença digna de parar para pensar, acreditando no mar do estagnado marasmo que nos rodeia.


A sensível monotonia circundante
 
Já o renomado Victou Hugo, parisiense, célebre autor de “Les Misérables”, apresenta uma definição mais adoçada, ao citar que:

“É ela (a solidão), que inspira os poetas, cria os artistas e anima o gênio”.

E o venerável poeta Eugênio de Andrade, português da Póvoa de Atalaia (Porto), afirma que “a solidão é um privilégio, pois que sempre detestei as coisas mundanas e, estar com pessoas apenas para gastar as horas é-me insuportável.”

Além de português e escritor, Antônio Lobo Antunes, que é vivo e psiquiatra, apresenta um conteúdo ainda menos audacioso e com uma pitada humorística: “Raras vezes tenho sentimento de solidão. E neles, não me sinto mal na minha companhia, divertimo-nos muito, os dois, eu e eu.”

Solitários, o eu sol dissimulado e o eu ente dinâmico

Enfim, vejo que a solidão caracteriza o solitário crônico, tendente a uma desconexão social. Nas fases em que me senti só, imaginava apenas não possuir as relações nas quais eu até apreciaria estar incluído, o que não identifica a citada antropofobia.

Eu não procurava o isolamento, mas era, sim, a característica de meu entorno. Um somatório de condicionantes que me fizeram encontrar os livros e as ciências, para saciar esta suposta lacuna, apartando-me daquela danosa senda.

Estando sozinho, facilita saborear a natureza, alimentar o conhecimento reflexivo, apropriar-se da liberdade, disponibilizar o usufruto de todos os sentidos,... elucidar tantos enigmas e tomar decisões antes difíceis, no terreno conflitante.

  A resplandecente flor solitária, admirando a origem das futuras

Entretanto, a própria saudade habita tal ambiente despojado, navega numa emoção de expectativa, vigilando o tempo e, alicerçada na memória, prospera a imaginação.

Faz lembrar a canção “Sozinho” do iluminado Caetano Veloso:

Às vezes no silêncio da noite
Eu fico imaginando nós dois
Eu fico ali sonhando acordado
Juntando o antes, o agora e o depois
(...)

E daquela canção, o antes ancoradouro, agora expectativa para depois continuar a viagem
 
A nau aqui fará escala. Então, sulcará a planura serena,
prosseguindo o rumo dos ventos da vida.
Descortinará e vivenciará todo o fascinante encantamento
dos recônditos cenários, ocasiões com a amada presente,
fraternizando estes dois sós numa sublime harmonia.


Prof. Darlou D’Arisbo
Em Porto Mendes – PR, setembro de 2024
 

(Homenagem à amada esposa, temporariamente cumprindo atividades na Espanha)

(Todas as imagens de Porto Mendes de autoria própria, com exceção da última: “Freepic”)

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Meu maior desejo

Uma fábula veiculando a básica simplicidade para alcançar a tranquilidade.

Há alguns anos, quando eu passeava pelo parque de uma pequena cidade do interior, uma idosa senhora me interpelou e ofereceu uma pequena e antiga lamparina. Sim, lembrei daquela conhecida história do Gênio do Aladim (As Mil e uma Noites).

Disse-me ela que a havia encontrado numa caverna e não acreditava nestas coisas de gênio satisfazendo desejos, então queria doar esta antiga luminária a alguém.

Mas era um objeto sem os belos característicos arabescos daquele lendário conto árabe, narrado pela primeira vez por Hanna Diyab, morador de Alepo, na antiga Síria, em 1709.

Este era um objeto metálico tosco, desprovido de atrativos, construído artesanalmente em metal, já oxidado, com suas partes rebitadas a fogo e aparentando ter séculos de existência.

Certamente, embora um utensílio de aparência simplória, teria grande valor histórico.
 
Ela guarda séculos de história

Recebi a peça com entusiasmo e após agradecer, a anciã esboçou um sorriso e seguiu seu caminho. E eu a coloquei na mochila e continuei meu passeio matinal, no sentido oposto, admirando as flores e ouvindo os pássaros.

Ao chegar em casa, coloquei-a sobre a mesa e confirmei seus detalhes rústicos de construção, embora com encaixes perfeitos. Aparentemente confeccionado em época em as soldas metálicas eram raras, pois tinha intrigantes rebites curvos que fixam partes ortogonais: a base com laterais e estas com o topo.

A história relata que, da lamparina emanava uma alva fumacinha, aos poucos se transformando em um corpo de mago difuso e flutuante no ar. Seria ele, um gênio, capaz de atender a três pedidos realizados pelo portador da tal lâmpada.

Ela estava suja, como se há muito tempo sujeita a intempéries e poeiras. Então pus-me a lavá-la, inicialmente com querosene e depois com água corrente e detergente. Sequei-a com um paninho absorvente e depois, cuidadosamente, esfreguei-a com papel toalha, para retirar-lhe toda a umidade.

Ao final desta limpeza, ameacei guardá-la numa prateleira, mas vi uma nuvenzinha espiralada saindo pelo orifício frontal.


E a fumacinha foi crescendo...

Surpreso, notei ela modificar-se num enevoado colorido e transformar-se vagarosamente num personagem semitransparente, barbudo, vestido em longa bata branca, com detalhes coloridos e brilhantes. Tinha um turbante vermelho enrolado na cabeça e sorriu para mim, evidenciando seus dois dentes dourados.

Perplexo, sentei e deixei correr meu quimérico devaneio.
Então ele falou docemente:

“Sabah alkhayri, Shukran,.. Oh. Desculpe, esqueci de falar a sua língua. Eu disse: bom dia, agradeço... por me deixar ver o seu mundo. Em troca desta sua gentileza vou permitir satisfazer-lhe um desejo, apenas um. Pense bem, para não se arrepender depois. Não tenha pressa,... eu aprendi a esperar.”

Ainda atônito, fui vasculhar na minha memória algo cobiçado, importante, ansiado,...
Então, para manter a atenção e a presença do genial falante, de castanhos olhos penetrantes e pairando a três palmos de mim, pensei em voz alta:

“O que eu mais quero? Ora, ora, o que eu mais poderia ambicionar... Dentre uma infinita quantidade de tantas coisas. Com o imenso receio de citar alguma equivocada e sem poder desfazer?
O que realmente eu queria desejar, que satisfizesse a felicidade minha e dos que eu amo? É complicado, tem de ser agora, o senhor está esperando e é só um desejo! Mas não eram três, no conto?”

Ele maneou a cabeça lateralmente, com semblante sério, num firme e silencioso não e, mostrando o indicador verticalmente ereto, demonstrou claramente a unidade. E continuei, claramente audível:

“Ah, a mais cobiçada, deixa eu ver, lembrar. Espere, um momento, só um momento...
É isso, encontrei, um MOMENTO é o que eu quero. Apenas infinito e de terno prazer. Tendo o universo a me acarinhar envolvendo todos os meus sentidos. Ver brilhar meus olhos nas estrelas a vê-las dançar, embebedar meu olfato num refrescante odor de flores orvalhadas, mergulhar meus ouvidos em doces sons do manto noturno, receber o mais aconchegante contato afetivo, estando imensamente feliz ao trazer alegria a alguém.
E receber, enfim, as bênçãos do Altíssimo Pai, sempre presente...
 
Sentir-me-ia nascer, tal a mais magnífica criatura, por um apenas e inesquecível momento. A minha mais singela cobiça,.. um MOMENTO é o que eu quero!”
 
Então ele olhou fixamente nos meus olhos, repetiu um movimento vertical da cabeça numa evidente aprovação e foi desvanecendo aos poucos.
Por algum tempo fiquei a observar a pequena lamparina, abri sua tampinha. Estava fria, não havia lá dentro qualquer sinal fumegante.
 
Voltou a ficar vazia

Mas, asseguro-lhes que, a partir de então tive tantos momentos maravilhosos e condizentes com meu pedido e dediquei mais carinho à velha luminária.
Passei a guardá-la em local digno, embora incrédulo na extraordinária aparição.
Afinal, não posso esquecer que ali descansa o gênio dos bons momentos.

Prof. Darlou D’Arisbo
maio de 2024




terça-feira, 19 de março de 2024

O Café da Etérea Vizinha - Da série "A Mensageira II"

Há alguns anos, numa tarde chuvosa e fria, estava eu solitário e recolhido no interior do motor home, lá no Camping de Foz do Iguaçu.  Eu lia algum assunto sem graça, quando vi, pela janela lateral, a chegada de mais dois campistas, num pequeno automóvel.
 
Era um jovem casal de calouros que, apesar da chuva, ambos empenharam-se a descarregar o carro e montar a imensa barraca.  

 O céu, ameaçando restaurar a vegetação

A tarefa deles, simples e corriqueira em tempo seco, constituiu-se em barulhento desafio.    Sacolas coloridas, canos de estrutura, sacos de alimentos, fogão, bancos, roupas, corriam em rodízio, transportados pelo par de pintos molhados, ora retirados do bagageiro e colocados no interior do veículo, ora a incoerente inversão.
Palavras de ordem em diversos timbres logo se fizeram ouvir.   E os invisíveis e travessos duendes da confusão, aos poucos tomavam conta do caos das ferragens, renitentes em não encaixar para montar a difícil e teimosa tenda.

Decidi então ajudá-los e realizar mais que apenas uma boa ação. Fazer o que eu gostaria que fizessem comigo em tais adversas condições meteorológicas.
Sem quaisquer apresentações, atraquei-me com eles na montagem da grande barraca de dois quartos, cozinha, e muito supérfluo equipamento.  
 
Enfim, após longo tempo, nós três, encharcados, demos conta do recado, ao apertarmos as mãos molhadas em cordial cumprimento.   Prometemos nos encontrar na cantina, mais tarde, para saborear uma merecida cerveja.

Ao voltar ao meu motor home, tiritando de frio, preferi tirar a camiseta sob o toldo e secar-me antes de adentrar.
Porem, para minha absoluta surpresa, surgiu-me ali, de repente e sem qualquer ruído, uma simpática senhora.   Tinha olhos brilhantes, um sorriso contagiante e vestia uma túnica branca, com capuz acinzentado.  Estava descalça e, com as duas mãos, segurava uma xícara de aromático café quente.
Disse-me que admirou minha generosidade para com os novos vizinhos, motivo pelo qual me trouxe o oportuno e delicioso café.

 Café: mentor da gratificação cerebral

Não entendi de onde veio e como apareceu ali, repentinamente, a um metro de mim, tal simpática mensageira de Deus.  E, tomado de assombro, não me saiam as palavras de agradecimento.
Embora minhas cordas vocais tenham conseguido só balbuciar um simplório “b.. brigado”, juro que meu cérebro preparou mais. Uma retribuição com mais e melhores palavras.   Algo como:

“Distinta e nobre senhora, eu não sou merecedor de tamanha gentileza.  O auxílio que prestei aos nossos recém chegados vizinhos, não justifica seu tamanho sacrifício.  Em pés nus na grama lamacenta, submetida aos rigores desta fria chuvarada, mãos a embalar tão singela porção quente e restauradora...   Nego-me a sorvê-la!   Vou sim guardá-la a mil e uma chaves,  por sete séculos, tal joia líquida, para minha eterna admiração...  
E que o bondoso Deus, em Sua infinita bondade, me permita lembrá-la, qual celestial criatura - um surpreendente anjo - a evocar-me a cada boa ação... tão poucas o faço.”
 
O calor do presente no líquido tangível
 
Mas o sublime inesperado bloqueou o procedimento mental e impediu-me de proferir tais doces palavras.

O dia seguinte amanheceu ensolarado, com límpido céu de brigadeiro.
Tentei em vão encontrar a tão gentil senhora, para agradecê-la. Percorri os locais próximos, perguntei aos demais vizinhos, porem sem sucesso.   
 
E, ao perguntar ao Guarda Camping, informou-me ele, claramente espantado com a história, que tal pessoa e conforme minha descrição, não estivera presente no camping.

Espero um dia poder encontrá-la, etérea vizinha, para retribuir tal notável e inesquecível gentileza.  

Neste ou em algum mundo destes.
             
Darlou D’Arisbo - setembro de 1995

 

terça-feira, 10 de outubro de 2023

O Pingente Estetoscópio - Da série "A Mensageira" - I

Em minha longa jornada de vida, já passada dos três quartos de século, uma infinidade de fatos foi agrupada em meus 97,431 bilhões de neurônios, número este relativo à média das quantidades propagadas por dezenas de cientistas discrepantes.

Alguns destes memoráveis fatos estão ali na transbordante caixinha das emoções, como o casamento, o nascimento dos filhos, das netas e tantos outros...

Mas, dentre estas gavetas da mente, uma delas, como se tivesse uma etiqueta azul, é destacada pelo seu inusitado conteúdo.

O armário das minhas memórias

Em especial, guarda ela no seu inesquecível conteúdo, ocorrências reais, tangíveis e inexplicáveis, acontecidas nas estradas de minha existência.
Consistem em surpreendentes aparições, que me ocorrem a cada intervalo de vários anos.

E todos os acontecimentos acervados nesta “gaveta” possuem algo em comum: revelam a presença súbita de uma senhora idosa, simpática, de olhos brilhantes e, que sempre me oferece algo tangível, como um regalo presente e inesperado.

Assim, já relatei algumas em publicações, como:"As meias amarelas e a vovó Beatriz" (Publ. 019)”, “O café da etérea vizinha (Mensageira II)” e outras.

Pois desta feita e sem mais delongas, percorria eu com a esposa, a passeio, com nosso motorhome, os retos e longos caminhos da Patagônia Argentina. 

Na região, as rodovias parecem não ter fim


Com muito calor e fatigados pelos longos trecho, encontramos uma única bela sombra à frente de um pequeno posto de saúde, longe da cidadela.

Ao estacionar, vislumbrei uma senhora, sentada na entrada do prédio, e fui perguntar se ali podia estacionar para descansarmos um pouco.
Ela estava absorta, tricotando e não demonstrou surpresa ao me receber. E ao erguer o rosto, pareceu-me já a conhecer de outras paragens.

A ímpar e estratégica presença humana na região.

Respondeu-me afirmativamente e mencionou, fitando-me diretamente com olhos muito brilhantes: “Meu nome é Sofia, sou atendente deste posto médico”.

Para eu retribuir em palavras a sua cordialidade, informei que minha neta, com idade seis anos, também possui este lindo nome.

Então, para minha espantosa surpresa, ela se levantou, abriu sua correntinha de prata que tinha ao redor do pescoço, e retirou dali o pingente em forma de minúsculo estetoscópio, o qual entregou-me, dizendo:

“Dê-lhe como presente, pois ela vai cursar medicina”.

O sublime momento me fez guardá-lo com carinho
 
Perplexo, embasbaquei, estendi a palma da mão e, com dificuldade pronunciei o simplório: “Obrigado, ela vai gostar”.

De imediato, despediu cordialmente e com o mesmo sorriso irradiante, sentou-se e voltou a tricotar, como se o fato lhe fosse rotineiro.

Um anjo, tangível e sorridente

Por vários dias tentei estabelecer um raciocínio circunstancial lógico, porém sem sucesso.

Conclui que tal personagem existe, com aparições intervaladas e, dentro daquela estrutura física e morfológica de uma simpática idosa, há um organismo indecifrável e com a faculdade de emanar alguma energia benfazeja que adoça os sentimentos e a emoção.

Assim como nas outras oportunidades que me apareceu, sua configuração sempre foi diferente, mas a admirável empatia e a luminescência dos olhos repetiram-se idênticos.

Esta personagem não é apenas uma senhora, é um ente, um anjo, um mensageiro Dele. Pois como declarou um querido amigo, a coincidência é um dos apelidos de Deus.

Já a recebi algumas vezes e espero encontra-la em outras tantas... 

Prof. Darlou D'Arisbo
janeiro de 2020

Pensamento do dia: 

As bibliotecas egípcias eram "tesouros dos remédios da alma", pois que nelas se curava a ignorância, que é a mais perigosa enfermidade e causa de todas as outras.



Obs: Imagens do armário e da senhora obtidos da internet, de domínio público, sem direitos autorais.