sábado, 15 de março de 2014

005 – Falecimento do Amigo Xico

 

Este, escrito na década de 90, foi agraciado com o Prêmio Leminski 2010.

Certamente, as imagens não retratam a realidade do episódio

Estou chocado, entristecido, estupefato, pois o mundo não pode aceitar isso. Há pouco retornei do enterro. Meu melhor amigo se foi. Justamente aquele, meu confessor, cúmplice e colega. Um amigo inesquecível. Comíamos e bebíamos juntos, até no mesmo copo. Um amigo de décadas.

Tantas vezes saímos a quatro: ele e a namorada, eu e a “Tuca”, irmã dela. Certamente não serei o mesmo depois da morte dele.

Enterro

Esta triste história começou ontem, cedo. A “Lu” havia pernoitado aqui, pela terceira vez. Só não dormiu comigo, porque discutimos ao discordar sobre o nome verdadeiro do Silvio Santos. Foi uma discussão besta, concordo, mas no calor da contenda não se pensa nisso. Eu acabei por dormir no chão, neste repentino frio danado, sobre um colchonete duro, parcialmente enfiado sob a mesa de pedra. Passei frio durante toda a noite.

Ela no sofá, na mesma sala de televisão, emburrada e emudecida, tal uma vaca. E, quando acordei, não lembrei onde estava e bati, violentamente, com o nariz na aresta inferior do granito. Sangrando muito, fui ao banheiro lavá-lo, mas estava fechado, pois ela tomava banho. Fechada e furiosa, ruminante microcéfala. Mas estas particularidades não interessam.

Tentei então lavar o nariz no tanque de lavar roupas, onde enrosquei o pé nas minhas roupas sujas amontoadas e caí, com o cotovelo esquerdo na tábua de passar, antes de estatelar-me no chão, com a nádega no degrau da porta. Berrei por ela, o cachorro começou a uivar junto e não resolveu coisa alguma.

Simpsons

Fui então sentar-me na cozinha e chorar minha desgraça, até ouvir o ruído da porta, fechando. Ela nem se despediu. Eu juro que aqui ela não entra mais. É formosa, mas estúpida.

Ao tentar tomar banho, assimilei mais um motivo de fúria dela: o chuveiro havia queimado. O jeito seria tomar um café sem açúcar, que tinha acabado, mas como a cafeteira estava suja, fui me vestir, com muita dor e dificuldade.

O nariz tinha uma laceração entre a cartilagem e o osso, o cotovelo estava roxo e o braço meio bobo, sem comando. Um galo na têmpora, um pequeno corte na orelha e dor, muita dor, no joelho e na lateral da nádega, complementavam a desditosa imagem.

Como tinha que chegar cedo ao serviço, entrei no carro, acionei o portão eletrônico e tentei sair, já atrasado. Claro que, com a chuva torrencial que repentinamente se abateu, o portão trancou.

E lá fui, tal pinto molhado e furioso, desemperrar a imensa e pesada grade metálica. Deixei aberto, para a empregada fechar. Nem lembrei que ela não vem quando chove muito.

Saí em ré, com muita dificuldade e, manobrei quase batendo num ônibus apressado, cujo irritado motorista acenou-me, mostrando ereto, o dedo médio.

Não andei mais que uma quadra e, bem no meio da rótula, para entrar na avenida, desconfiei que a dificuldade em dirigir não era minha, mas sim de um pneu vazio. Desci do carro ali mesmo, para confirmar, quando alguém chamou uma ambulância dos bombeiros a me ver naquele lastimável estado.

camioneta

“Quem lhe atropelou, fugiu?” perguntou-me um passante. Eu queria apenas um guincho e um táxi.  Só isso! E o bombeiro, então chegado, limpou meus ferimentos sem querer entender minha história (pudera!). Obrigou-me a assinar uma negativa de necessidade de atendimento hospitalar e tirou o time.

Eu havia emprestado o estepe pro Xico (agora falecido), ainda no verão passado. Afinal, temos os carros semelhantes e, ao irmos para o litoral, o dele furou dois pneus. E rodas de carros antigos, tais os nossos, são raras e não servem em qualquer outro recente. Nem me lembrava disso. O coitado morreu sem devolver o estepe.

Para encurtar o trecho, duas horas depois eu chegava ao trabalho, sem carro, sem celular (sei lá onde caiu), todo molhado, doído e desesperado.

A secretária (a mula gorda) avisou-me que o diretor me aguardava. E, como era de se esperar, não me permitiu sequer balbuciar a explicação. Ao me dar uma infinda bronca, com o indicador direito apontado, eu não esperei o fim e o mandei à merda. E repeti três vezes, aos berros: “Sua Excelência VÁ À MERDA”.  Eu não aguentava mais.

Desci os cinco pavimentos pela escadaria, caí duas vezes (numa bati com a testa num degrau e na outra virei o dedo médio da esquerda) e só parei quando estava na garagem do subsolo. Mera atividade mecânica, imaginando que o carro estaria lá.

Saí a pé na chuva, mancando de dor na perna esquerda, todo estropiado. Fiquei “séculos” no meio fio, acenando para os raros táxis e, o máximo que fizeram, foi respingar água. Resolvi então aguardar um ônibus e ir para a casa do Xico, pois ele fica em casa, pela manhã.

molhado

Mas sem óculos (deve ter caído com o celular) e com ninguém para me auxiliar, eu não conseguia identificá-los. Depois de várias tentativas frustradas, continuei a pé mesmo.

Passava do meio dia quando cheguei lá e eu mal sentia tato nas pernas. O Xico, logicamente, já havia saído. E, como a rua é deserta, sentei no meio fio e fiquei encostado numa árvore, meditando sobre as maldades da vida. Coisa de alguns minutos e estava repleto de formigas.

Algumas picaram com tal violência que eu arrancava metade do seu corpo e elas não largavam...

Não conseguia imaginar o que mais poderia acontecer. Pensei até em ligar a cobrar para o meu irmão, de um telefone público. Eles existem em todo o lugar onde não se precisa de telefone.

formigas

Voltei para o centro a pé, pois já estava com bastante fome. Mais uma hora mancando e cheguei à Avenida Central, “encontro” das lanchonetes aqui da cidade. Molhado, com visíveis e feios hematomas, manco e com a cicatriz (ainda meio aberta) no nariz, convenientemente escolhi a pior, a mais feia e vazia lanchonete e entrei. Acho que já era meia tarde, não tinha certeza, pois o relógio parou. E, se não tivesse parado, não haveria diferença, pois eu estava sem óculos.

Sentei num dos poucos banquinhos, à margem do balcão, e pedi um hambúrguer e uma Coca-Cola à garçonete. Ela me fitou atentamente (não deveria ser diferente) e depois perguntou se estava me sentindo bem. Deu-me um copo d’água enquanto eu aguardava o lanche. Contei-lhe a história toda, devidamente resumida, enquanto ela empacotava flores. Uma adolescente linda, ela tinha os cabelos claros e me ouviu! Deu-me doce atenção! Era quase tudo o que eu queria. Seria pedir-lhe muito, tomar-me em seu colo e me fazer adormecer, com as suas delicadas mãos a acariciar meus poucos cabelos.

Ela foi um venerável anjo. Ao menos até informar que ali era uma floricultura.

Floricultura

Eu sentia muito cansaço, meio tonto. Mas agradeci e ela amparou-me até a porta. Pensei em ajoelhar-me aos seus pés, divina e linda fada e beijar-lhe as mãos. Se o fizesse, eu não levantava mais. De lá eu deveria ter telefonado para o amigo Xico. Lembro que ela até ofereceu o telefone. Fui uma anta retardada, mas consegui ir caminhando (mancando) no sentido do consultório do Xico.

A chuva havia parado e entardecia uma neblina pesada e morna, presságio de mais água.

Eu já não conseguia comandar plenamente o corpo  e era comum ouvir buzinadas e palavrões ao atravessar as ruas.  Mas a cabeça estava boa, ao menos por dentro. Sentia-me leve, como se voasse baixo.

Perguntei a um guarda, onde teria um telefone público e ele informou que, no quinto quarteirão, bem em baixo de um prédio alto, havia quatro “orelhões”. Tanto trabalho tentando encontrar um e agora eu estava próximo de quatro. Oh, augusta felicidade!

orelhões

Enfim, cheguei aos telefones, situados em frente ao  descrito prédio alto. Era o prédio do consultório do Xico!    Tomei o elevador e, sozinho sentei-me no chão do veículo, valendo-me da desaceleração para erguer-me novamente.

“O doutor Francisco foi pra fazenda, volta amanhã. O senhor quer deixar recado? “ informou-me a secretária, já ameaçando fechar a porta.

Pedi o telefone emprestado e liguei para o celular dele, que estava fora de abrangência. Agradeci e descemos juntos no elevador. Ela perguntou se eu estava me sentindo bem, por três vezes, e não sei por que, pois no térreo sumiu apressada.

Nas proximidades encontrei uma praça, onde sentei num confortável banco, agradecendo aos céus pela existência dele no meu caminho, ante a chuva que recomeçava. Acho que fiquei ali umas duas horas e, como eu não conseguia dobrar o joelho, resolvi procurar uma farmácia.

Ao encontrar um policial, perguntei onde teria uma farmácia ainda aberta e, para minha surpresa, ele respondeu com um sorriso e uma pergunta: “O senhor encontrou os orelhões?”

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Surpreendido por reencontrá-lo e pela sua memória, respondi afirmativamente com um aceno da cabeça e, com muita atenção, ouvi sua orientação geográfica. Não foi difícil encontrá-la. Era uma farmácia pequena e sem movimento.

Lá, o infame e solitário balconista, que mais parecia um vendedor de “carnê do baú”, insistiu em me vender mais medicamentos. Saí dali com uma sacolada de coisas. Conseguiu me vender até Phymatozan, Glycerophosphato, Strychnine, Antiphlogistine, Rhinogenol, Leite de Rosas, de Magnésia, de Aveia, de Colônia, Peitoral de Angico Pelotense, Lypocholepatine, Bismutho Geyer e outros produtos, certamente vencidos ou falsificados.

Andei dois quarteirões e, apoiado numa grande lata de lixo, abaixo de uma luminária, eu lia os rótulos e jogava os frascos no lixo. Cada um acompanhava uma gargalhada. Ri tanto que me urinei, pela segunda vez.

Eu já não sentia cheiros e limitava-me a rir das tantas coisas que o infeliz vendeu, além do que me interessava, as quais paguei com meus inúteis “vales-refeição” vencidos.

Voltei para o bairro, exaurido e sem saber exatamente como. Só sei que me flagrei sentado no bar do velho Antenor, onde eu e o Xico nos encontrávamos intermitentemente, o que agora (oh! meus santos), nunca mais o faremos.

Por alguns minutos fiquei ali, ao lado de “outros” bêbados, cada qual mergulhado em suas dores e odores.

Bar do Antenor

Antes de beber, em lágrimas dissimuladas, agradeci ao Supremo Criador por tudo o de bom que havia me oferecido.

Afinal, eu nunca fui um exemplo de coisa alguma. Como amante eu deixei a desejar em todas as chances que tive. Como motorista, atropelei um cachorro e dois gatos. Meus irmãos pouco me ligam. Para minha viúva mãe, não recordo ter feito algo de bom. Também pudera, ela me detesta... Ou é o  irmão caçula que ela odeia??...

Eu não lembrava mais. Também, já não fazia diferença quem ela detesta ou detestava, nesta altura do campeonato perdido. Eu estava embriagado e, mesmo antes de beber, confundia as idéias e as conclusões.

Agora é beber e depois ir para casa, se conseguir chegar moribundo até lá”, pensei.

Eu já não enxergava bem, nem o copo ainda cheio, quando chegou alguém por trás e falou meu nome, carinhosamente. Ainda consegui me virar e ver o Xico, meu querido amigo Xico.

A telepatia funcionou, meu aguardado amigo Xico”, balbuciei.

Eu estava em lágrimas. Mas não deu tempo.

Então eu o abracei, ele rapidamente pegou meu copo e, na mais ingênua ignorância, com sofreguidão, bebeu todo o meu veneno, guaraná com estricnina.

Pé

(A insolidez da vida é par à tangibilidade da ficção)

Darlou D’Arisbo

terça-feira, 11 de março de 2014

003 - O Melhor dos Vinhos

 
Nesta postagem, uma excêntrica história da série “Crônicas” e escrita há décadas. Obviamente as fotos não revelam exatamente as imagens do episódio.
As crônicas desta série constituem nada mais que o cultivo de pérolas no mar da vida. Um reflexo oportuno, relatando numa interpretação imaginativa, ficcional e subjetiva, algumas passagens da minha existência
 
O Melhor dos vinhos
Talvez eu não devesse ter ido. Mas tantas vezes se faz alguma coisa por mero ímpeto. Coisas simples, curiosidades, coisinhas enfim. Fazemos, às vezes mecanicamente, até sem interesses em resultados. Normalmente não nos trazem problemas estas coisinhas, embasadas no “ir ou fazer”. Assim vamos, quando alguém nos chama, mesmo sem saber quem nos chama ou o que quer nos informar.  
Mas enfim, eu ainda tenho dúvidas se deveria ter ido. Coisa que já informei lá no início. Ora, costumamos dizer “eu não deveria ter feito” quando já feita, ou até justamente por isso. E, em vezes, as consequências são agradáveis, outras não. Pois desta vez sim: agradável e curiosamente estranha. Ou o inverso: curiosa e agradavelmente estranha.
Era uma estrela cadente, destas como mil por aí. Estávamos os três na varanda fresca do gracioso apartamento do casal de amigos.
Interrompi bruscamente o assunto e exclamei pro Xico: “olha lá”. Apontei ao lado direito da coluna do prédio, na direção sudoeste.
“É um meteorito, e deve ter caído perto, pois notei que sua luz desceu aquém do pé da última colina”, eu disse.
Coisa de uns sete quilômetros, pensei. Tive vontade de ir lá e vê-la: a gota caída do céu, estaria ainda vermelha em brasa.
O Xico (médico, amigão, cético e lerdo) respondeu:
“Deve ser alguma estrelinha caída de tua fértil imaginação...”
Já a Miri, sua esposa, foi ao menos mais polida, ao dizer:
“Tens direito a três pedidos...”
“Ajudar plenamente alguém, brincar com uma criança e saber cativar uma doce mulher..” respondi.
Ela fitou-me profundamente e disse, lá do fundo:
“Boniiito...”
“Eu pediria um estetoscópio eletrônico, uma Ferrari zerinho e clientes ricos.” falou sorrindo o Xico.
O assunto era vago, a cerveja acabada, a noite avançava e a Miri, disfarçadamente, bocejava... Forcei também um bocejo e, com ele justifiquei a despedida do casal de amigos.
Tomei o carro e, sob os seus acenos, deixe-os abraçados, na mesma varanda.
Eu ia ao hotel, onde estava hospedado, mas a noite convidava a passear.
Parecem existir, cá no interior, mais estrelas que nas capitais e, cada uma delas aparenta sussurrar algo. Cada qual encerrava algo, tal um sigilo.
Diminuindo a velocidade, parei o carro. As estrelas fascinavam-me.
478a
Curioso, acionei a partida e aprumei o carro para o sudoeste. Desci todo o vale por uma estradinha sinuosa e escura. Assim como um cubículo corredor, com florestas silenciosamente adormecidas aos lados, curvas firmes e lógicas à frente, lúgubres no retrovisor escuro.
O chão, quente e natural, parecia que eu tentava acordá-lo com os faróis. E, acima, uma contínua faixa daquilo que apelidamos céu e, que no fundo, não sabemos exatamente o que é.
Ao fim de uma descida suave, então quase plana, vi à direita, algo como se fosforescente, a uns vinte metros ao lado da estrada. Um louco e suave impulso me fez, a pé, ir até lá.
Eram metais treliçados, em forma de tubos fosforescentes. Ou vidros cilíndricos como lâmpadas tenuemente acesas e levemente dobradas.
Em conjunto, aqueles tubos formavam algo como uma escultura moderna e curiosa. Uma composição geométrica. Era uma “coisa” indescritível. E, aquela sensação infantil e curiosa de descobrir algo, tomou-me, a esquecer de perigos, bandidos, animais noturnos e coisas assim.
A estranha “coisa” estava parada, imóvel, silenciosa. Parecia emanar dela, uma impressão de paz.
Não acredito que seus “raios”, de sutil luminescência, ativassem meu cérebro para sentir aquela feliz serenidade similar de quando, por exemplo, se encontra uma concha azul, em forma de sino, na tranquilidade da beira mar...
Cheguei bem próximo e, com o medo esquecido, toquei-a com a mão. A tal estrutura parecia ter brotado ali. Era fria, composta por um conjunto de canos paralelos e curvos, com ligamentos em forma de transversinas. Pareciam ocos semitransparentes e, internamente iluminados, assim como fracas e finas lâmpadas fluorescentes. Tinha o tamanho pouco menor que meu carro.
Na parte superior e ao centro, os canos suportavam mantas de espuma plástica (ao menos pareciam). Assim como confortáveis e delicadas cadeiras de dentista, sobrepostas.
Abaixo, também englobada pela estrutura, havia uma parte em forma de caixa, fosca e escura, com as arestas arredondadas.
Rodeei-a, tentando visualizá-la melhor. E atrás, três pequenas antenas, como se constituíssem o cume de uma deitada pirâmide triangular.
Pensei em voltar rápido para a cidade e buscar alguém para testemunhar o meu achado (ou meu sonho).
Porém, como aquilo poderia não acontecer novamente, resolvi ter certeza de não sonhar, confirmando sozinho a existência do tal bólido.
Seria temerário denominá-la uma nave extraterrestre ou coisa parecida. Ou relacioná-la com a estrela cadente.
Eram duas confortáveis e delicadas poltronas (quase camas) sobrepostas e suportadas por uma estrutura fosforescente amarela. Como se fossem tubos translúcidos com gás incandescido. Eu estava deslumbrado. E a tal caixinha preta, seria o motor? Sentia-me muito tenso. Não abalado, mas por extrema curiosidade.
Apalpei esta tal caixa. Era como o todo: fria e fechada.
Seria impossível tal cubo, do tamanho de uma caixa de refrigerantes, servir de máquina para uma nave espacial ou um helicóptero, seja lá o que fosse aquilo! Não havia entrada de ar, ou saída. Apenas um bloco fechado com três anteninhas, embaixo de duas esbeltas poltronas...
“Devo imaginar outra hipótese, isto não é uma nave espacial” pensei.
Cheguei a exclamar, sonoramente, para o negro eco noturno:
“Isto não é o que parece ser!!!”
“É, sim !” respondeu-me uma voz, logo atrás.
Foi o suficiente para eu me conscientizar e pasmar. Era uma voz de mulher, resoluta e delicada, pensei, sem ter coragem de virar-me ou encará-la.
“Você está armado?” perguntei-lhe, forçando ignorar sua patente feminilidade..
“É um veículo capaz. Mais do que os que tu conheces” falou, ignorando minha pergunta.
Vi minha sombra trêmula, projetada num arbusto à frente, o que me fez concluir que a pessoa estivesse caminhando em minha direção, com uma lanterna na mão. Ou com alguma luz difusa, sem foco concentrado, amarela e inconstante.
“Semelhante a uma vela acesa!” respondeu-me, adivinhando minha dúvida.
Num sobressalto, virei e joguei-me de bruços no chão úmido, num bobo ímpeto de escapar de possíveis disparos de arma. E, ao encará-la, fui tomado de pasma comoção.
Era uma bruxa. Ou tinha tudo para ser. Deitado que estava, observei-a de baixo para cima. Sapatos baixos e grandes, pretos, enrugados e foscos. Seus pés, imensos, não eram paralelos.
Formavam um ângulo de uns 20 graus. Vestia uma bata (um saco) de tecido pardo e folgado. Coisa de dois números maior que seu estreito e angular manequim.
Bruxa do conto
Sobre esta, tinha um casaco (ou jaqueta), com mangas muito largas, sem gola, vermelho ou roxo. A mão esquerda segurava a tal vela, ou algo semelhante, com a chama dentro da cera, sem candelabro ou suporte. A direita firmava um reluzente bastão metálico, de aproximadamente um metro.
Seus dedos eram suficientemente longos para, cada um, dar duas voltas na vela (ou no tal bastão). Eram magros, com as juntas grossas e unhas compridas e agudas. Seu rosto era “incomportável”. Tinha traços humanos, mas era destituído do menor senso estético. A boca, sempre semi fechada (mesmo quando falava), tinha lábios enrugados, pálidos e mortos como toda a pele aparente. As laterais côncavas com os ossos zigomáticos salientes. O nariz, longo, afilado e torto para a esquerda, com uma grande verruga lateral direita. Os olhos pareciam mergulhados em ninhos de rugas de pele. Eram claros, diretos e brilhantes. Um lenço (ou algo parecido), da cor do casaco, cobria-lhe a cabeça.
“A luz da vela identifica-me, iluminando minhas cores, nariz, verruga e olhos.. E dá sombra às minhas rugas, tal como me conheceste na noite das meias comentou ela, já imóvel e próxima.
Lembrei-me que, há onze anos, viajávamos eu e a Beatriz (a qual semi adormecida, reclamava do frio nos pés) pelo oeste de Santa Catarina, numa madrugada fria e chuvosa. Ao encontrar uma infeliz e solitária velha, no acostamento, eu parei o carro e ofereci carona. Ela não aceitou e disse-me que estava ali, à margem da estrada, aguardando-nos para oferecer o par de meias longas e grossas....
Incrédula até hoje, a Beatriz guardou as tais confortáveis meias do inacreditável sonho, que eu nunca entendi.
“E o que vais me oferecer desta vez?” perguntei.
Novamente ignorando a pergunta, ela apontou com o bastão, a poltrona superior, dizendo-me:
“Instala-te”.
A princípio não entendi e ia perguntar, mas lembrei que ela evitava responder. Levantei-me apreensivo, coloquei o pé esquerdo sobre algo que parecia um degrau, o joelho direito sobre a espuma fofa e deitei-me.
Então, devidamente instalado, notei que a tal poltrona era tão aconchegante, que se assemelhava a uma forma de mim. Era cômoda e confortável.
Olhei o céu muito estrelado e senti vertigem. Medo de cair naquele infinito vazio escuro.
Ela chegou perto de meu rosto, mas não senti seu calor. Supus que era fria como a luz de dentro dos canos. Vi seus olhos tão de perto, tão brilhantes, que pareciam minúsculas lâmpadas incandescentes. E o nariz, imenso e curvo, seria dispensável, pois ela não parecia não respirar.
“Para cheirar!” respondeu-me imediatamente.
Sem dúvida, telepaticamente, ela captava meus pensamentos...
E, segurando na ponta das unhas, colocou minúsculas pastilhas (ou comprimidos) nas minhas narinas.
Tomado pela decisão de assistir o “filme” até o fim, eu não ousava discordar.
“É um leve cloridrato de prometazina, para aliviar a sensação de vertigem!” disse-me, como sempre, delicadamente.
Senti um volátil e débil odor salgado, mas acabou logo.
Observei que ela acomodou-se na poltrona inferior e, logo após, tentei em vão elevar a cabeça cada vez mais pesada. Consegui observar meu carro, ainda com os faróis ligados e depois as luzes da cidade distanciando-se ...ao alto !
Eu me sentia muito bem e não experimentava frio nem calor.
FOTO da Terra
Vi, depois, as estrelas sobre mim desviarem-se para a esquerda, confundidas com o horizonte e algumas aglomerações luminosas. Talvez fossem vilarejos.
Não senti movimento algum e parecia estar parado a grande altitude, num espetáculo negro, salpicado de tênues luzes e cores, esperando o movimento dos continentes na contínua rotação de nossa amada Terra.
Não tive tempo para refletir, ou tirar conclusões. Foi muito rápido e, quando senti frio, já estava aqui nesta cabana pequena e acolhedora, com uma lareira acesa, à esquerda. À frente, numa mesa decorada com toalha branca rendada, um jantar estranho e apetitoso, uma garrafa de vinho e duas taças de cristal.
Atentei ao rótulo da bebida: lá, a paisagem de um antigo lugarejo com rua estreita e pavimentada com pedras grandes, casas de fachadas em estilo árabe, com pequenas e ornadas sacadas metálicas.  Na rua, desenhada também uma bela moça transportando um balde com uvas.
Em letras neogóticas, li naquele rótulo: “Viño Rioja - El Mejor Viño de España.”
A linda jovem do rótulo, então surpreendentemente sentada à minha frente, ergueu sua taça e convidou-me a brindar: “salud”.
 
(arredores de LOGROÑO / Espanha - dezembro de 1976 )





























































































sexta-feira, 7 de março de 2014

001 - A Majestade do Percurso

 

Certa vez, visitando a cabina de um imenso avião, informou-me o piloto que ele perde massa corpórea a cada viagem. A exaustiva atenção necessária aos instrumentos de comando, lhe gasta o próprio corpo, pois tem de observar e dirigir dezenas de pontos de controle em seu monstro alado.

Cá, hoje, em meu insigne e terrestre ônibus apartamento, somo quarenta destes, a me exigir atenção. E, se em menor tensão, certamente em maior aprazimento. Alguns destes comandos exigem movimento do meu corpo, outros apenas rotam os olhos. E tem também os que sensibilizam os ouvidos, ou outros sentidos ainda menos tangíveis, como a memória, a saudade, a expectativa...

Tenho aqui retrovisores, tais magníficas telas de radar, pedais sincronizados em enérgico jogo de caminhar parado, ponteirinhos a comentar a velocidade, rotação da máquina, quantidade de combustível, distância percorrida. Rolinhos de números correm sem parar - tal o percurso de minha vida - e desfilam algarismos sem fim.

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Los Caracoles – Chile - 2012 

Seguro firme a grande e negra argola da direção, desviando os buracos da via danificada, teimosa quanto a do meu rumo, a evitar os obstáculos da minha existência.

Alavancas longas e curtas, aqui e ali, uma pisca a ultrapassagem, outra muda a marcha. Trotes curtos, galopes longos à centena de sonoros e vigorosos cavalos que me tracionam...

Sons às dezenas. De válvulas reguladas ou ventos barulhentos. Alguns curtos e triviais comentários, outros longos assuntos com a amada navegadora, ou distantes vozes das curtas ondas da Rádio Guaíba de Porto Alegre, companheira de sempre.

Cheiros de flores dos matos passantes, fecais das vacas do caminhão à frente, bicho morto estupidamente atropelado, fumaças das secas criminosamente queimadas...

À noite, vez em vez, meus olhos conferem o festival de luzinhas do painel. Delicadas, azuis, vermelhas, verdes e amarelas, lembram luminosas alegorias do natal cristão e informam sobre o sistema de freio, pressão do lubrificante, funcionamento dos faróis, proteções de segurança, ...

P3252809aCarcassone – França - 2013 

Puxo, empurro, torço, aperto botões funções que ligam, acendem, lavam e limpam o pára-brisa, berram buzinas...

O cinto diagonal aperta-me a segurança, minha coluna tende a arquear, reacomodo-me. Auto avalio-me a cada ação e regozijo-me no poder. As decisões intermitentes e acertadas, alimentam meu ego ao exercitar meus sentidos. E o comando do veículo me oferece imponência. Neste trono sou o rei sobre as toneladas desta morada rodante.

Minha fiel comissária de bordo, doce anjo de minha guarda, oferece água gelada, guloseimas e biscoitos salgados, alerta pela chegada dos inesperados quebra-molas, sempre vigilante aos traiçoeiros radares.

139r  Gruyeres – Suiça - 2013

Os frios e calores têm, na porta, manivelados seus ventos. Outros ares inferiores aventam as canelas por baixo do painel. Os laterais circulam e os esfriados superiores balançam os poucos fios que na “torre” ainda me restam.

Visuais? Oh! Fantásticos, coloridos pelos deuses, tridimensionados por mim, vou saboreando e deixando-os para trás, ao percorrer o fugaz e acinzentado tapete desleixado e cariado. Ficam no passado, gentes, vacas, cavalos, crianças, cachorros, pássaros, andarilhos,... Pisco luzes ao alertar colegas passantes, buzino-lhes cordialidade,...

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Schonau – Horben (Alemanha) 2013

Por fim, a ansiedade da chegada na comunhão, indescritível sensação de encontrarmos vivos, alegres e felizes os nossos queridos amigos, nos impulsiona e resume o motivo deste árduo e fascinante deslocamento, na majestade do percurso.

Prof. Darlou D’Arisbo (Dan) 07-03-2014